Luiz Antonio de Assis Brasil, além das lidas com as palavras, desenvolve intensa intimidade com as sonoridades. Músico de formação clássica, é com naturalidade que sons e letras se encontram amiúde em sua trajetória. Alguns de seus romances, como Concerto campestre, de 1997, e Música perdida, de 2006, trabalham o suave e perene duelo entre as duas formas de expressão e se estendem para o debate sobre o artista e sua condição humana. Sem estabelecer ganhadores dessas pelejas, Assis Brasil busca o que existe de intensa inquietude humana nas atividades artísticas.
Seu novo romance, O inverno e depois, novamente palmilha por esse terreno. O enredo conta de Julius, um músico gaúcho que ainda criança, premido por um problema familiar, deixa o pampa, a estância Júpiter, e vai morar em São Paulo. Ali faz toda sua formação, mas é numa viagem de estudos para a Alemanha que vive um grande amor e uma imensa frustração ao não conseguir executar o Concerto Para Violoncelo e Orquestra do compositor Antonín Dvořák. Anos depois, já casado com a pragmática Sílvia, tentando vencer o trauma, voltando para a solidão do pampa disposto a estudar à exaustão a peça do compositor austríaco. E daí todo o mais decorre.
O enredo aparentemente aponta para uma história de amor, algo recorrente na literatura. O inverno e depois é sim uma história de amor, mas se estende além disso, e aí reside a maestria de Assis Brasil. E uma das armas que usa para driblar a obviedade é o ritmo da narrativa. Fugindo da urgência tão comum à literatura atual, Assis trabalha em pianíssimo, para usar uma expressão musical. Não que seja um romance desprovido de ações, apenas seu autor opta por trabalhar um texto sem intensidades, mais descritivo, ao ritmo de um concerto ou do vento pampiano. E este jeito narrativo traz de volta o prazer de uma leitura mais consistente, na qual o leitor se ambienta paulatinamente a cada nova informação da trama. Com isso, as surpresas e reviravoltas vão sendo absorvidas de maneira lenta e suave.
Como uma boa história de amor, Assis trabalha com personagens antípodas. Julius, com seu rigor e seu formalismo, se apaixona por Constanza Zabala, a clarinetista desprendida, mas amarrada a um passado de dores e impossibilidades. Daí nascem equívocos e mágoas, presenças indispensáveis às narrativas da paixão. Aliás, o mestre Ariano Suassuna já ensinava que um amor realizado não dá um bom romance. Uma trama forte e definitiva exige dramas, dores, incompreensões.
Como já se disse, no entanto, o romance de Assis Brasil quer ir, e vai, além do amor. Sua intenção é discutir a condição humana frente às impossibilidades que o mundo lhe impõe. No caso de Julius está o concerto de Dvořák e sua realização como musicista. É um homem desiludido com o destino que a vida lhe traçou. Parou como músico de uma grande orquestra, mas isso já não o satisfaz, sobretudo quando sabe que além dali está apenas a aposentadoria. É nisso que vai se resumir seus dias? A questão o impulsiona a rever o passado, inclusive reabrir, involuntariamente, os pecados familiares guardados nos galpões da estância Júpiter.
Constanza Zabala, por seu lado, aprende que a música não vai levá-la muito além da satisfação de formar novos músicos. O sonho de solista numa orquestra europeia fica guardado diante da necessidade de tocar a vinícola familiar. Klarika Király, que também estudou com Julius em Würzburg, volta para Budapeste e se conforta tocando numa orquestra local. Agripina Antônia, a meia-irmã de Julius, impossibilitada de conviver com os fantasmas da estância e com um casamento infeliz, busca a realização em uma agência de viagem na fronteira gaúcha.
Impossibilidades
Todos, enfim, têm uma impossibilidade para domar. E daí vem a fortaleza do romance. Penetrar na alma de cada personagem para dali arrancar a essência da resistência de cada um. Mesmo o mais frágil dos personagens, como o peão Baldomero Sánchez, se apega à mitologia local para melhor sobreviver em suas funções humildes, eternas e necessárias. E daí explode a dimensão humana. Assis Brasil entende que o homem, em sua complexidade, não pode ser visto como algo plano, chapado. Há sempre uma profundidade a ser explorada e nisto se apega para construir sua trama.
Para vasculhar mais intimamente esta percepção, ele se agarra à complexa história do sul brasileiro. Suas revoluções e violências, suas solidões e heroísmo são esmiuçados numa trama que verdade e ficção de embrenham e se confundem. Se na trilogia Um castelo no pampa, lançada entre 1992 e 1994, o autor usa como pano de fundo um projeto arquitetônico megalomaníaco e inútil para discutir o poder, em O inverno e depois se volta para a criação da mitologia, mas sempre tendo como base as condicionantes históricas da região.
Um antepassado de Julius, “o jovem general que comandou tropas vitoriosas na Guerra do Paraguai, foi feito barão e depois visconde e, para culminância de uma vida épica, acendeu em pessoa o fogo imortal que arde até hoje em homenagem a si mesmo”, decretou que, no dia em que o fogo apagar, o mundo acaba. O medo faz com que os peões, por duzentos anos, se revezem à beira da chama numa vigília insana, mas capaz de adiar, acreditam, o extermínio dos tempos.
Desta forma, Luiz Antonio de Assis Brasil volta a uma recorrência de toda sua obra, a onipresença do pampa. Não necessariamente o espaço físico, os campos amplos das planícies gaúchas. A ele interesse os sentimentos que estas amplidões promovem. Ao mesmo tempo em que provocam o prazer da liberdade imensa, tolhe o homem com sua solidão e com a sensação de esmagamento promovido pelo horizonte infindo.
Todas estas contradições estão incorporadas no protagonista Julius, um refinado homem do mundo que não consegue se libertar dos medos pampianos. Teme o olhar vigilante do retrato do general e o fim do fogo do galpão com o mesmo vigor com que vacila ao apanhar o arco do violoncelo para executar o concerto de Antonín Dvořák. E assim, trabalhando com elementos de seu quintal, numa linguagem elegante e densa, Luiz Antonio de Assis Brasil cria mais uma obra com sabores de universalidade.