Poemas de Rita Dove

Leia os poemas traduzidos "Esta vida", "Pitos", "Lendo Hölderlin em um pátio com a ajuda de um dicionário", "Nos juncos", "O evento"
Rita Dove, poeta norte-americana
27/04/2017

Tradução e seleção: André Caramuru Aubert

This life

The green lamp flares on the table.
You tell me the same thing
as that one,
asleep, upstairs.
Now I see: the possibilities
are golden dresses in a nutshell.

As a child, I fell in love
with a Japanese woodcut
of a girl gazing at the moon.
I waited with her for her lover.
He came in white breeches and sandals.
He had a goatee — he had

your face, though I didn’t know it.
Our lives will be the same —
your lips, swollen from whistling
at danger,
and I a stranger
in this desert,
nursing the tough skin of figs.

Esta vida

A chama do abajur verde sobre a mesa.
Você me diz a mesma coisa
que a pessoa
no andar de cima, dormindo.
Agora eu vejo: as possibilidades
são vestidos dourados numa caixinha.

Criança, eu me apaixonei
por uma gravura japonesa
de uma garota que olhava a lua.
Eu esperei, com ela, por seu amor.
Ele chegou com calções brancos e sandálias.
Ele tinha cavanhaque — tinha

a sua cara, embora eu não soubesse disso.
Nossas vidas serão uma —
seus lábios, inchados de tanto dar assobios
de alerta,
e eu, uma estranha
nesse deserto,
cuidando das cascas fortes dos figos.

…..

Pithos

Climb
into a jar
and live
for a while.

Chill earth.
No stars
in this stone
sky.

You have ceased
to ache.

Your spine is
a flower.

Pitos

Suba para
dentro de um jarro
e viva
por um tempo.

Terra fria.
Sem estrelas
neste céu
de rochas.

Você não sente mais
dor.

Seu dorso
é uma flor.

…..

Reading Hölderlin in a patio with the aid of a dictionary

One by one, the words
give themselves
up, white flags dispatched
from a silent camp.

When had my shyness returned?

This evening, the sky refused
to lie down. The sun crouched
behind leaves, but the trees
had long since walked away.
The meaning that surfaces

comes to me aslant and
I go to meet it, stepping
out of my body
word for word, until I am

everything at once: the perfume
of the world in which
I go under,
a skindiver
remembering air.

Lendo Hölderlin em um pátio com a ajuda de um dicionário

Uma a uma, as palavras
vão desistindo,
bandeiras brancas enviadas
de um campo emudecido.

Quando foi que minha timidez voltou?

Nessa noite, o céu se recusou
a repousar. O sol se agachou
atrás das folhas, mas as árvores
de há muito tinham-se ido.
O sentido de que superfícies

chegam até mim enviesadas e
saio para encontrá-las, caminhando
para fora de meu corpo
palavra por palavra, até que sou

tudo de uma vez: o perfume
do mundo no qual
afundo,
uma mergulhadora
se lembrando do ar.

…..

In the bnulrush

Cut a cane that once
grew in the river.
Lean on it. Weigh

a stone in your hands
and put it down again.
Watch it moss over.

Strike the stone
to see if it’s thinking
of water.

Nos juncos 

Corte uma vara que um dia
cresceu no rio.
Apoie-se nela. Sinta o peso

de uma pedra em suas mãos
e a devolva ao chão.
Observe-a cobrir-se de musgo.

Bata na pedra
para ver se ela está pensando
na água.

…..

The event

Ever since they’d left the Tennessee ridge
with nothing to boast of
but good looks and a mandolin,

the two Negroes leaning
on the rail of a riverboat
were inseparable: Lem plucked

to Thomas’ silver falsetto.
But the night was hot and they were drunk.
They spat where the wheel

churned mud and moonlight,
they called to the tarantulas
down among the bananas

to come out and dance.
You’re so fine and mighty: let’s see
what you can do, said Thomas, pointing

to a tree-capped island.
Lem stripped, spoke easy: Them’s chestnuts,
I believe. Dove

quick as a gasp. Thomas, dry
on deck, saw the green crown shake
as the island slipped

under, dissolved
in the thickening stream.
At his feet

a stinking circle of rags,
the half-shell mandolin.
Where the wheel turned the water

gently shirred.

O evento

Desde que eles deixaram as encostas do Tennessee
sem nada do que se gabar, mas
bonitos e com um bandolim,

os dois negros recostados
na beirada de um barco
inseparáveis: Lem arrebatada

pelo falsete prateado de Thomas.
Mas a noite estava quente e eles, bêbados.
cuspiam onde o leme

misturava lama e luar,
eles pediam para as tarântulas
dependuradas nos cachos de bananas

que saíssem para dançar.
Você é tão bela e forte: vamos ver
do que é capaz
, disse Thomas, apontando

para uma ilha coberta de árvores.
Lem, tranquila, falou suave: São castanhas,
acredito
. Mergulhou

ligeiro como um suspiro. Thomas, seco
no deque, viu a coroa verde balançar
enquanto a ilha ia

sumindo, dissolvida
na densa correnteza.
Aos seus pés

um fedorento monte de trapos,
o bandolim de meia concha.
Onde o leme deixava a água

suavemente franzida.

…..

Nightmare

She’s dreaming
of salt again:
salt stinging her eyes,
making pepper of her hair,
salt in her panties
and the light all over.
If she wakes
she’ll find him
gone and the dog
barking its tail off,
locked outside in the
dead of night.

Lids pinched shut,
she forces the itching
away. That streetlamp
through the window:
iridescent grit. As a girl
she once opened
an umbrella in the house
and her mother cried
you’ll ruin us!
but that was so
long ago. Then
she wakes up.

Pesadelo

Ela sonha
com sal, de novo:
sal picando os olhos dela,
fazendo do cabelo pimenta,
sal nas calcinhas,
e a luz por toda parte.
Se acordar
vai descobrir que ele
saiu e o cachorro latindo agitado
preso do lado de fora
no meio da noite.

Pálpebras apertadas,
ela empurra a coceira
pra longe. A luz daquele poste
através da janela:
saibro iridescente. Quando criança
ela uma vez abriu
um guarda-chuva dentro de casa
e a mãe dela berrou
você vai nos arruinar!
mas isso foi há tanto
tempo. Então
ela acorda.

…..

Mississippi

In the beginning was the dark
moan and creak, a sidewheel
moving through. Thicker
then, scent of lilac,
scent of thyme; slight hairs
on a wrist lying down in sweat.
We were falling down
river, carnal
slippage and shadow melt.
We were standing on the deck
of the New World, before maps:
tepid seizure of a breeze
and the spirit hissing away…

 

Mississippi 

No princípio eram o gemido e
o rangido escuros, as pás da roda
levando para adiante. Mais denso,
então, o aroma de lilás,
o aroma de tomilho; pelos delicados
num pulso repousando em suor.
Éramos o rio que
descia, escorregando nas
carnes, uma fusão de sombras.
Nós estávamos de pé no convés
do Novo Mundo, diante de mapas:
o morno confisco de uma brisa
e a alma assobiando para longe.

Rita Dove (1952)
Já recebeu tantos prêmios e homenagens que fica complicado listar. Só títulos de Doutora Honoris Causa ela tem 25. Foi condecorada pelo presidente Obama, Poeta Laureada do Congresso, fora o Pulitzer. A poesia de Dove, forte, universal e límpida, está entre as melhores que se escrevem hoje nos Estados Unidos.
André Caramuru Aubert

Nasceu em 1961, São Paulo (SP). É historiador formado pela USP, editor, tradutor e escritor. Autor de Outubro/DezembroA vida nas montanhas e Cemitérios, entre outros.

Rascunho