Riqueza sob os escombros

A literatura russa do século 20 ainda permanece parcialmente desconhecida, apesar do que já foi revelado após a Glasnost
01/11/2007

Na passagem dos 90 anos da revolução bolchevique, ocorrida em outubro de 1917, é oportuno lembrar o impacto que esse evento viria a ter, nos setenta anos seguintes, sobre a cultura da Rússia e de todos os demais países que viriam a formar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Lembrar, com assombro, não apenas a devastação verificada sobre inumeráveis obras que não se adequaram ao modelo oficial, do Realismo Socialista, imposto a partir dos anos 30, como a capacidade delas sobreviverem a todas as tentativas de suprimi-las.

Ocultada e desconhecida do Ocidente durante grande parte do século 20, a riqueza cultural e artística da extinta URSS só viria à luz, a partir de meados dos anos 80, após a Glasnost (transparência) promovida no governo de Mikhail Gorbatchev. No Brasil, o processo desse estado em que tudo é anunciado, em que nada pode ser escondido, foi registrado, detalhadamente, no livro Os escombros e o mito: a cultura e o fim da União Soviética (Companhia das Letras, 2005), de Boris Schnaiderman, que merece ser revisitado.

Schnaiderman coloca em xeque, nesse livro, uma idéia há muito estabelecida: a de que a literatura russa, no século 19, é incomparavelmente mais rica do que a que foi produzida, no século 20, após a revolução bolchevique. Ao se lançar à exaustiva tarefa de contar “uma história que não foi totalmente narrada”, ele mostra como, apesar de não ter surgido, desde a revolução de 1917, nenhum nome da estatura de um Tolstói ou de um Dostoiévski, não há como negar o vigor extraordinário de escritores e artistas cujas obras, apesar das mais severas restrições, subsistiram e vieram à luz.

Nas 306 páginas de Os escombros e o mito, o leitor vê renascer, através de arquivos do KGB e da burocracia russa, uma infindável seqüência de obras e nomes de poetas, romancistas, contistas, dramaturgos, filósofos, historiadores, cineastas, teólogos, artistas plásticos e fotógrafos, cujas vidas foram aniquiladas, seja pela morte física (na prisão, no degredo, nas execuções sumárias), seja na “morte civil”, quando “um artista criador era eliminado da vida cultural, suas obras cessavam de circular, seu nome desaparecia de dicionários biográficos e enciclopédias, tornava-se perigoso proferi-lo”.

Primeiros sinais
Inicialmente cético em relação à Glasnost, Schnaiderman percebeu, por volta de 1987-88, em viagens à URSS e à Alemanha, que estava se criando uma nova atmosfera naquele país. E que “o colosso, aparentemente imobilizado, estava de fato se mexendo”. A Glasnost, diz ele, “foi acompanhada de um abrir de gavetas que trouxe à luz numerosos materiais, e estes obrigam a uma revisão de todas as nossas noções sobre a cultura russa a partir de 1917”.

E prossegue:

Muitas obras importantes se perderam, pois, quando se abriram os arquivos do KGB, verificou-se que muitos manuscritos confiscados com a prisão de seus autores parecem ter sido simplesmente eliminados. (…) Além disso, nas reminiscências dos contemporâneos, surge com freqüência a lembrança da queima de papéis pelos que estavam aguardando na prisão. Mas, assim mesmo, parece prodigioso que tenha sobrado tanta coisa. Muita gente arriscou a vida guardando escritos dos que eram perseguidos, e deste modo podemos dispor de materiais de cuja existência nem suspeitávamos.

Grande parte do trabalho de apresentação desses arquivos foi realizada por jornais e revistas de tendência “liberal”, a exemplo da Ogoniók e da Litieratúrnaia Gazeta. Mas também pelo rádio, a televisão e até por folhetos xerocados e distribuídos na rua. A imprensa tornou-se, de repente, veículo de recuperação da memória cultural com “lances verdadeiramente patéticos”, como diz Schnaiderman, referindo-se a uma longa carta do jornalista Boris Iefimov, na qual este aborda a revisão do processo e sucessiva reabilitação de N. I. Bukhárin, A. I. Rikov e outros condenados em 1938 do “bloco anti-soviético trotskista de direita”.

Diz Iefimov:

(…) Minha geração conhece e lembra bem os pecados voluntários e involuntários. Eu apresento aqui, pessoalmente, aos próximos de Nicolai Ivânovitch Bukhárin os meus pêsames mais sinceros e profundos. Como eu não entenderia o seu sofrimento? Não carreguei eu acaso, por muitos anos, o estigma de “irmão de um inimigo do povo”?

Eu sei: o que acabo de escrever será interpretado por diferentes pessoas de diferentes maneiras. Uns vão compreender, outros vão recebê-lo de ânimo sombrio ou com maldade. Mas, qualquer que seja a leitura que se faça, penso que o mais importante, apesar de tudo, está em que foi restabelecida finalmente a justiça, que triunfou a verdade e que a todos os caluniados e supliciados foi devolvido um nome honesto. Sim, isto provavelmente é o mais importante.

Grande parte das prisões e mortes de intelectuais na URSS se deu nos anos seguintes a 1934, quando ocorreu o I Congresso dos Escritores Soviéticos e se colocou o Realismo Socialista como modelo na literatura e nas artes, propugnando um positivismo heróico e triunfalista, perante o qual toda forma de expressão que não se enquadrasse nele, a exemplo do experimentalismo e das vanguardas, era colocada imediatamente sob suspeita e duramente reprimida.

“Em agosto de 1946”, diz Schnaiderman, “as revistas de Leningrado Zviezdá (A Estrela) e Leningrad foram censuradas publicamente pelo Comitê Central do Partido, divulgando-se ao mesmo tempo um informe de A. Jdanov que se tornaria famoso, no qual há formulações brutais contra toda obra de arte que se afastasse das normas de um otimismo patrioteiro e simplificador”.

E prossegue, mais adiante:

Mas o jdanovismo não se limitou à campanha de imprensa. Seguiram-se expurgos nas universidades e em todas as instituições ligadas à cultura, sessões públicas de críticas aos acusados de desvios, com a presença obrigatória destes, e, também, processos e mais processos, que resultavam em fuzilamentos e trabalhos forçados. Foram sendo suprimidas as pouquíssimas liberdades conseguidas graças à união de forças contra o nazismo, e o número de presos em campos de trabalho chegou às mesmas proporções da época dos famosos Processos de Moscou.

Prisões e mortes
São muitas as histórias trágicas de autores que não se adequaram à estética oficial imposta pelo Partido Comunista. Nomes como os do poeta Óssip Mandelstam (1891-1938), condenado a trabalhos forçados na Sibéria, onde viria a morrer, por ter escrito um poema satírico em que Stálin aparece com enormes bigodes de barata; ou do romancista e dramaturgo Mikhail Bulgakov (1891-1940), autor de O mestre e Margarida, cujos livros foram tirados de circulação e suas peças recusadas, ao ponto de ter dito, em uma de suas cartas: “Tudo me foi proibido, estou na miséria, acossado, em completa solidão”. E, em outra missiva: “Nos últimos sete anos, concluí dezessete obras de diferentes gêneros, e todas elas se perderam. Semelhante situação é impossível, e em nossa casa há trevas e uma completa falta de perspectiva”.

Merecem capítulos especiais o ficcionista Isaac Bábel, autor de Cavalaria vermelha, fuzilado em 1941; o diretor de teatro V. Meyerhold, preso e morto a tiros em 1940; D. Mirsky, Daniil Kharms, curiosíssima figura da literatura e do teatro do absurdo, que prenuncia Beckett e Ionesco; Ana Akhmátova, Vielimir Khlébnikov, sem falar nos nomes mais consagrados tais como o do poeta e romancista Boris Pasternak, Prêmio Nobel de 1958, e de Maiakovski, cujo suicídio tem a ver também com seu desencantamento em relação ao rumo tomado pelo comunismo na Rússia. Outras personalidades, a exemplo do lingüista Roman Jakobson e dos pintores Chagall e Kandinsky, cujas obras foram boicotadas nas grandes galerias de arte da Rússia e só mais recentemente vêm sendo revalorizadas, optaram por viver no Ocidente por não encontrarem um ambiente cultural e político favorável à sua atuação intelectual.

Vale acrescentar que a desgraça perante o partido atingia também a família do “traidor”. É o caso da mulher de Meyerhold, Zinaída Reich, que, após sua prisão, “apareceu morta e barbaramente mutilada em seu apartamento”. Diz Schnaiderman:

Realmente pavoroso, o destino dos parentes das vítimas, que em princípio partilhavam a “culpa” de seus familiares. Irina Ovtchínikova conta que havia no interior estabelecimentos especiais para os filhos menores, que eram submetidos a um tratamento desumano. Têm-se notícias da transferência de crianças de uma cidade a outra, conduzidas sob a guarda de cães policiais. Nas regiões ocupadas pelos alemães, estes separavam, crianças judias e as fuzilavam, e as outras eram simplesmente soltas em meio à população faminta.

E havia casos como do ficcionista russo Iúri Olecha, que renegariam todas as suas idéias “contra-revolucionárias” para não cair em desgraça perante o Partido e o Camarada Stalin. Autor de uma novela (Inveja, 1927) em que retratava, “numa prosa rica de metáforas, estranha, sutil”, “um intelectual desajustado no mundo tecnocrático e estranho dos planos qüinqüenais”, e depois de ter, no início dos anos 30, manifestado apreço pela obra de James Joyce, Olecha se veria, anos depois, compelido a penitenciar-se daquele “velho pecado”.

Disse ele:

O artista deve dizer ao homem: “Sim, sim, sim”, mas Joyce diz: “Não, não, não”. Tudo é ruim sobre a terra, diz Joyce. E, por isso, toda a sua genialidade me é desnecessária […] Vou citar um trecho de Joyce. Este escritor afirmou: “O queijo é o cadáver do leite”. Vejam, camaradas, como é terrível. O escritor ocidental viu a morte do leite. Ele disse que o leite poderia estar morto. É boa esta formulação? Sim, é boa. Isto foi dito corretamente, mas nós não queremos esta correção. Nós queremos […] a verdade artística dialética. E segundo esta verdade, o leite nunca pode ser um cadáver, ele escorre do peito materno para a boca da criança, e por isso é imortal.

E, para se entender bem a utilização do adjetivo “kafkiano” para definir o que se passava naqueles anos, veja-se o seguinte diálogo entre os poetas Maiakovski e Nicolai Assiéiev, contado por este último, em 15 de novembro de 1939:

[…] estávamos caminhando pela Pietrovka em 1927, quando Maiakovski de repente me disse: “Kólia, e que tal se, de repente, o Comitê Central baixar a seguinte ordem: escreva-se em versos iâmbicos?”. Eu lhe disse: “Volóditchka, que fantasia absurda! O Comitê central vai decretar a forma do verso?”.
“Mas imagine que você de repente…”
“Não consigo imaginar isso.”
“Ora, será que te falta imaginação? Então, imagine o inconcebível”.
“Bem, não sei. Eu certamente não saberia, seria o meu fim”.
Calamo-nos e continuamos a caminhar. Não dei importância a isso, achei que era uma fantasia louca. Percorremos uns quarenta passos. Ele agitava a bengala, fumava e de repente disse: “Pois eu vou escrever em verso iâmbico”.

Este diálogo, diz Boris Schnaiderman, “lança uma luz terrível sobre aqueles anos”. Maiakovski estava, evidentemente, bem cônscio da ameaça que pesava sobre a arte e a poesia modernas. Ele escreveria em 1928:

A república das artes
está em perigo mortal;
perigam a cor,
a palavra,
o som.

Não por acaso, a frase de uma antiga canção patriótica, que dizia: “Nascemos para tornar o fantástico realidade”, seria modificada para “Nascemos para tornar Kafka realidade”. Isto num país em que foi editado até um Guia para a eliminação das bibliotecas que atendem ao leitor de massa de obras antiliterárias e contrárias à revolução, publicado por N. Spierânski e Nadiedja Krúpskaia, a mulher de Lênin. E que incluía, em sua lista, obras de autores como Platão, Kant, Schopenhauer, Taine, Nietzsche e Tolstoi, além de todas as obras da rica teologia russa e até de um clássico sobre a própria Revolução de Outubro, a reportagem Os dez dias que abalaram o mundo, de John Reed.

Na conclusão de Os escombros e o mito, Boris Schnaiderman declara seu espanto quanto aos extremos do sublime e do repulsivo aos quais o povo russo passava com tanta rapidez. E referia-se a um episódio relatado por Iúri Borev, autor do livro Breve história do stalinismo. Em lendas e anedotas.

Durante a coletivização forçada, as camponesas enviadas para a Sibéria muitas vezes levavam seus bebês para o soviete local, pois compreendiam que eles não poderiam sobreviver à penosa viagem e esperavam que os conterrâneos se encarregassem deles. Mas os conterrâneos não se atreviam a nada, sem uma ordem superior. Consultadas as “autoridades competentes”, estas concluíram que, em primeiro lugar, os bebês pertenciam a uma classe hostil e, em segundo, era preciso cortar pela raiz a prática dos kulaques de deixar para o Estado ou para os camponeses pobres a tarefa de alimentar os seus filhos. Em conseqüência disso, os sovietes locais encaminhavam os pequenos para um soviete mais central, onde eles ficavam no chão, berrando enquanto podiam. E aos poucos os gritos iam rareando, até cessar por completo.

Chegava-se, assim, à trágica situação prevista pelo romancista Eugeni Zamiatin, autor da novela Nós!, que inspiraria, anos mais tarde, o escritor inglês George Orwell em sua distopia, 1984. Para Zamiatin a “verdadeira literatura não pode fluir da pena de obedientes e rotineiros burocratas, mas terá que ser produzida por loucos, eremitas, heréticos, sonhadores, rebeldes e céticos”. O que não poderia se esperar de um país cujos “heréticos” (e seus descendentes) eram simplesmente eliminados, era que seu vigor subsistisse — e que, ao fim de tudo, aparecesse o que não se esperava: uma arte e literatura dignas do que melhor se produziu no século 20.

Carlos Ribeiro

É escritor e jornalista, autor de Já vai Longe o Tempo das Baleias e O Chamado da Noite, entre outros.

Rascunho