Em evento recente sobre poesia, promovido por um programa de pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, o poeta e tradutor Paulo Henriques Britto elencou uma série de características que aproxima uma parte da produção poética contemporânea. Entre alguns desses traços, mencionou a performance ainda flâneur, do poeta passeador, o dado episódio, circunstancial — nada de grandes acontecimentos — e um insistente afastamento do plano do simbólico, que, na exposição irônica de Britto, revelaria certa recusa do poético, se entendermos este como processo de articulação, composição, enfim, intervenção no campo dos signos e seus efeitos. O poeta-crítico revela ainda que há uma profusão de dêiticos que não retomam referentes possíveis de serem percebidos pelo leitor.
Ao mapear esse possível cenário da poética contemporânea, Britto deixa no ar (muito por conta do tom, a meu ver, irônico) a dúvida: trata-se mesmo de um ato consciente de composição, ou apenas uma perda da consciência criativa que ainda deveria oferecer marcas contundentes de diferenciação entre um texto de poesia e um texto deliberadamente prosaico?
Acrescentaria à reflexão-provocação do poeta outra modalidade bastante frequente na poesia atual, o caráter documental deliberadamente assumido por um engajamento direto na realidade. Sabemos que literatura, há séculos, não é sobre outra coisa que não a realidade, porém, o caráter exageradamente documental pode resultar num afastamento de uma das principais tensões que a literatura sabe travar com a realidade — a ampliação da própria realidade. Não está em questão aqui a legitimidade ou não do engajamento na realidade, afinal, foi dito acima, a relação da literatura é primordialmente com a realidade; trata-se, antes, de admitir que a intervenção no plano da realidade atinge níveis mais interessantes quando opera no regime do simbólico, dado que o simbólico, o literário, o poético se comunicam pela empatia mais do que pela informação.
Ecologia poética
Os livros de Mariana Paz, Verbo do rio e A matéria mais suja do dia, não incorrem neste último prejuízo do poético, pois instalam o leitor na dimensão simbólica e sensível de delicadezas que se enraízam numa sorte de economia poética que se inclina para o que poderíamos chamar talvez de ecologia poética (devemos isso mais ao léxico de ambos os livros). Também não paira dúvida sobre a viva capacidade da poeta mineira em fazer versos. Algumas soluções formais variam de um livro para outro, a exemplo da pontuação mais definitiva no primeiro livro, bem como a utilização mais diretamente padronizada das maiúsculas em início de frases.
A dúvida que os livros lançam paira mais sobre essas situações da poesia contemporânea mapeadas por Paulo Henriques Britto.
O primeiro livro, Verbo do rio, é uma bonita conversa com poesia contemplativa, dialética moderna com haicais. As próprias divisões do livro apontam para isso: Verão, Outono, Inverno e Primavera. Numa tradição ocidentalizada dos pequenos poemas japoneses as estações do ano aparecem frequentemente como pano de fundo de modo a estabelecer a atmosfera dos livros, vide, por exemplo, algumas composições de Alice Ruiz. Essa herança, tão bem assimilada por alguns poetas contemporâneos, transborda de Bashô, poeta andarilho, espécie de sacerdote da poesia num outro tempo e espaço.
A inspiração de Mariana Paz no mestre japonês não se observa apenas nos poemas curtos, pois mesmo nos poemas mais longos percebemos um chamado contemplativo:
Trabalho no barro
o peso do dorso frio,
pés rachados sobre a terra.
…
Escavo no espaço
a busca das mãos em cuia
— prece de dança.
A mesma articulação percebemos no segundo livro, A matéria mais suja do dia, em que algumas estrofes presentes em poemas mais longos se oferecem feito haicais:
rasgado à tempestade
feroz entre as naves
escorre o mar
pelas cortinas
a montanha
sobe
o movimento dos dedos
debate
brilham rostos imensos
vive quieta a pedra
onde encostam a face
Ressalte-se, claro, que não é apenas no poeta sacerdote que Mariana encontra abrigo para versar. João Cabral de Melo Neto e Manoel de Barros aparecem não apenas nos títulos, Cabral no primeiro (poeta do rio) e Manoel no segundo (poeta das matérias inúteis que se conhece de barriga no chão), mas também em soluções formais como essa de Verbo do rio:
Na terra vegetal habita
o seco rodeado de água,
teu deserto.
Ponto de onde partes.
Na esteira dos belos metapoemas de Cabral, como em A palo seco, ou em Psicologia da composição, nota-se aqui também a musa moderna explodindo de terreno árido.
Ou em A matéria mais suja do dia:
A cabeça cava a forma qual quer
o gesto do desenho subterrâneo
(a letra em segredo de ser)
Aqui notamos o gesto cerebral de Cabral — uma cabeça que “cava a forma”, bem como a suspensão em parênteses, tão presente no poeta pernambucano — e a palavra em germinação, tão recorrente em Manoel de Barros, que gosta das sujeiras das matérias. Aliás, para este poeta, matéria de poesia e sujeiras se tocam.
Falta de referencialidade
O problema a ser pensado, a meu ver, no que toca a boa percepção de Britto e os livros de Mariana Paz, diz respeito à falta de referencialidade. Sabemos que o rio que intitula um dos livros traz a ambivalência do vocábulo que pode se referir também ao verbo rir conjugado no presente do indicativo, embora esse aspecto não seja tão explorado na obra. Entretanto, ao lermos esse Verbo do rio, não sabemos ao certo que paisagem está sendo cortada. E não apenas no que se refere à nossa geologia (o que não é uma necessidade), mas também no que se refere aos rios do campo do simbólico. Difícil evocar esse rio. Não é como a evocação mitológica da infância no Recife proposta por Manuel Bandeira, em que, mesmo sem termos visto e vivido os elementos que aparecem no poema, conseguimos evocar nossas próprias memórias visuais e sonoras da infância. É um rio que parece comover apenas a poeta. Não que não seja capaz de despertar emoções, mas o acesso à espessura desse rio parece estar confiscado apenas às vivências da poeta.
N’A matéria mais suja do dia não sentimos esse acesso dificultado, mas talvez percebamos um outro excesso, o do acesso generalizado em demasia, e assim a matéria suja também se difunde em múltiplas possibilidades. Isso, em princípio, pode ser um elogio à literatura, mas é como se a evocação, podendo ser feita por múltiplos eus, não estabelecesse uma espessura em particular onde possamos estar juntos.
Isso não são problemas dos livros de Mariana Paz, isso são marcas de boa parte da poesia contemporânea. Sendo assim, é importante nos perguntarmos se o que estamos esperando da poesia atual ainda não está exageradamente impregnado do monumento erguido no século 20 por, entre outros, João Cabral de Melo Neto.
O poeta que não deixou dúvidas sobre seus rios falou, em 1954, numa conferência a escritores em São Paulo, que a função moderna da poesia seria reestabelecer a comunicação entre poemas e leitores, bem como entre leitores e mundo; porém, claro, de modo a ampliar o que chamamos de comunicação. Para Cabral, a função da poesia é que é moderna, não a poesia. Mais recentemente, em artigo na revista Cult, Raúl Antelo glosou essa ideia ao dizer que a vida é que é moderna, não o artista.
Admitindo esse tipo de abordagem, que me parece muito acertada, nos caberia perguntar que tipo de idiossincrasia do presente esse tipo de poesia permite perceber. Que tipo de ritmo da vida contemporânea temos conseguido perceber pela poesia atual? Estamos vivendo um tempo em que a comunicação não recupera mais o princípio etimológico de “colocar em comum”? Um tempo que, antes, aponta para uma abertura radical das evocações possíveis, de modo a não ter mais que articular espessuras particulares para o leitor vivenciar? Uma poesia que radicaliza o não ter que se explicar e que se oferece demasiadamente aberta por querer conversar com tudo, em linguagem direta, em sintaxe prosaica e objetiva? Perguntando de outra maneira, o campo do simbólico não é mais um lugar de se habitar juntos?
Enfim, o que estão postas aqui, a partir da leitura de livros bem escritos e versados por Mariana Paz, não são dúvidas em relação à habilidade da poeta ou dos poetas contemporâneos, são dúvidas sobre as perguntas que ainda dirigimos à poesia.
Os livros de Mariana, ao não aderirem às linguagens prosaica e direta (apesar da sintaxe predominantemente direta), não aderem ao excessivamente documental, o que é um aspecto bem-vindo. Mas, ao investir no campo do simbólico, parece se afastar consideravelmente da perspectiva cabralina de recolocar a comunicação no gesto poético moderno.
De novo, o problema que se abre é se a poesia continua tendo esse potencial de fazer ver ritmos e espessuras do tempo. Porque, se ainda é disso que se trata, a poesia de Mariana Paz, ao lado da de muitos contemporâneos, diz-nos que o tecido do nosso tempo (nossas idiossincrasias) tem mais revelado multiplicidades de eus do que convivências de nós. E então estaríamos nos afastando da concepção cabralina dos galos tecendo a manhã juntos. Ou ainda, estaríamos, seja pela recusa do simbólico ou pela abdicação da referencialidade, afastando-nos em demasia da comunicação poética.