Rinha de galo grande

Com Quem faz gemer a terra e Logo tu repousarás também, o gaúcho Charles Kiefer prepara o seu renascimento literário
Charles Kiefer: escrita simples, correta e sensível.
01/04/2006

O gaúcho Charles Kiefer considera o seu ingresso na editora Record como um renascimento literário. Ele tem toda razão, mais ainda porque a Record está relançando um de seus principais romances — Quem faz gemer a terra, que é, também, um dos mais belos e atuais relatos sobre a questão da reforma agrária no País.

Ambientado no interior do Rio Grande do Sul, Quem faz gemer a terra narra a história de uma família de pequenos agricultores que perde suas posses e acaba num acampamento sem-terra. Não é um livro engajado e muito menos político mas, ao contar a saga do trabalhador rural Mateus, Kiefer nos alerta que por trás de cada rosto de sem-terra que vemos todo dia nos jornais está uma família. Cada família tem sua história, mais ou menos importante, mas é uma história humana.

A história de Mateus ganha profundidade na escrita simples, correta e sensível de Charles Kiefer. Preso após matar um soldado num confronto (esta parte é baseada num episódio real), Mateus faz uma regressão pensativa sobre sua vida e sobre como foi parar ali. Não há como não ficar simpático a este anti-herói desde o começo, quando Mateus relembra o relacionamento com seu avô, presença marcante em sua infância.

Um dia, quando Mateus estava na varanda de casa com o pai, Moisés, um carro funerário parou no portão perguntando por Lindolfo Lang, o avô: “Viemos entregar o caixão”. Para surpresa da família, o velho havia encomendado o próprio caixão e decidido dormir dentro dele para se acostumar quando a morte chegasse.

Carregamos o caixão até o quarto dele, no fim do corredor. Ele jogou o colchão de palha pela janela, abriu a tampa e forrou com os cobertores que estavam no guarda-roupa. Afofou o travesseiro de pena de galinha e entrou no caixão. “Apertado não fica”, ele disse, “mas vou ter que cuidar os cotovelos”.

Depois da morte do avô, a família arrisca tudo ao investir em soja, mas a safra é perdida por causa da seca. Eles vendem a terra para pagar os empréstimos bancários e as opções ficam entre tentar a vida na cidade ou ir para o acampamento. A família decide pela esperança de ganhar um pedaço de terra quando saísse a reforma agrária, uma esperança coberta apenas pela lona preta da barraca. (“Deitado, ouvindo os pingos na lona e o vento correndo lá fora, vendo o meu pai tossindo sem parar, a minha mãe rezando encolhida e o Pedro dormindo, eu senti foi saudade do meu tempo de guri.”)

O relato de Kiefer mostra que, apesar das agruras da vida no acampamento, os sem-terra fazem o possível para estabelecer uma rotina. As crianças estudam, os adultos dançam nos fins de semana, há o flerte, o namoro e o casamento. A esperança não muda os planos. Mateus se casa, tem filho e segue a vida, até que o incidente com um policial o leva da lona para a cela.

Quem faz gemer a terra não é um livro pensado para induzir alguém a tomar partido, até porque Mateus matou um soldado e este também teria uma história comovente a seu favor. Mas é um livro que, naturalmente, induz à reflexão. É um livro humano, e aí reside sua força.

Novos contos
Além da nova edição deste importante romance, a Record está lançando a antologia Logo tu repousarás também com 14 contos inéditos de Charles Kiefer.

São narrativas curtas com cenários variados, que falam desde do reencontro de um ex-torturador com o torturado, uma brincadeira de crianças que acaba em tragédia, um médico que escreve uma sensível história em busca do pai, até um prosaico relato com minúcias sobre rinhas de galos.

Nem todos os contos têm a mesma força, e nem o seu conjunto causa o mesmo impacto que a leitura de Quem faz gemer a terra, mas em alguns contos Kiefer mostra habilidade para iniciar um conflito sem previsibilidade, conduzi-lo com a necessária tensão e dar-lhe um final irretocável.

O conto que abre o livro, Medo, é grande exemplo disso, ao colocar ex-torturador no táxi dirigido pelo ex-torturado.

O que vejo, ao retrovisor, são imagens invertidas: a cicatriz que estava no lado direito do rosto vai para o esquerdo. O rosto, aprendi no táxi, não é a soma de testa, nariz, bochechas e queixo, o rosto é outra coisa.

O que parecia ser conversa de taxista vira uma histórica dramática, em que o policial encontra seu filho pequeno ao lado do revolucionário que acabou de torturar, enquanto este faz a barba e tem uma navalha afiada a seu alcance.

O drama se faz presente com ainda mais força em contos como O boneco de neve, Morte súbita, Maria Rita e Belino, nos quais morte e violência aparecem com certa naturalidade e impressionam justamente por isso. São contos inteligentes, que mostram que a morte e a violência, na maioria das vezes, são apenas conseqüências, às vezes inevitáveis, às vezes imperceptíveis, como no chocante O boneco de neve, em que quatro garotos cobrem um amigo com gelo.

Excitados, eu, Maneco, Juca e João Carlos, todos meninos, todos inocentes, e incendiados todos pela branca irresponsabilidade da infância, cobrimos primeiro as suas pernas, depois o seu tronco. Não recordo em que momento percebemos que ele não respirava mais.

O mais divertido de Logo tu repousarás também é a história de Nero, um galo de briga. Quem narra a aventura de Nero é seu tratador, que diz que preparar um galo é como contar uma boa história: “Embora estejam todos ao redor do curro por causa do desfecho, as marchas e contramarchas é que fazem a briga interessante. Uma história também tem unhas e esporões”.

A história de Nero e seu tratador é tão bem contada que os dois, ainda que no plano da rinha, lembram um pouco o Mateus de Quem faz gemer a terra. Seria injusto dizer que Kiefer é melhor ou pior conforme o tamanho da narrativa, mas percebe-se um conforto maior do autor neste conto, o único realmente longo do livro. Usando com perfeição a voz do narrador, Kiefer alterna o relato entre as brigas na rinha, os conflitos da família que se dedica a preparar os galos e o treinamento dos “lutadores”.

De oito em oito dias, os galos vão pro treino — de biqueira e retovo, é claro, porque senão eles se machucam. E duas vezes por semana faço trabalho-de-mão. A esquerda embaixo do peito e a direita equilibrando a cola: vuupt, o bicho sobe quarenta e cinco centímetros, bate as asas. De cento e vinte a cento e cinqüenta pulos, pra não ficar ladino e engordar.

Ao entrar para a Record, Charles Kiefer realmente renasce, afinal, conquista espaço em uma das maiores e mais agressivas editoras do País, um espaço mais disputado que rinha. Que não esqueça dos cento e vinte a cento e cinqüenta pulos, pra não ficar ladino e engordar.

Quem faz gemer a terra
Charles Kiefer
Record
155 págs.
Logo tu repousarás também
Charles Kiefer
Record
107 págs.
Charles Kiefer
Nasceu em Três de Maio (RS), em 1958, e atualmente mora em Porto Alegre. Estreou na literatura em 1982 com Caminhando na chuva. É autor de Aventura no rio escuro, Valsa para Bruno Stein, A face do abismo, Dedos de pianista, Museu de coisas insignificantes, Os ossos da noiva, A última trincheira, O escorpião da sexta-feira, entre outros.
Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho