🔓 Rindo de nervoso

Em "Tudo meio horrível", Nathalie Lourenço explora temas delicados com uma ironia trágica que deixa o leitor sem saber como reagir
Nathalie Lourenço, autora de “Tudo meio horrível” Foto: Rodrigo Pirim
01/04/2023

Se houvesse, na literatura brasileira, um prêmio para melhor título, Tudo meio horrível, de Nathalie Lourenço, ganharia de barbada. Dúbia e insinuante, a expressão traz uma inclinação de comicidade para algo sobre o qual não se devia fazer graça, a ironia clandestina para uma realidade em que o absurdo ultrapassou as raias do mal-estar e se converteu num tipo picaresco de estado de espírito. A mais recente antologia da autora paulista subverte o previsível para arrancar, de capturas da vida, o riso involuntário que sucede o espanto. São dezesseis relatos de corrupções e falências tanto das relações humanas quanto das instituições sociais abordadas com uma incorreta naturalidade.

Versão brasileira, que abre o livro, estabelece a tônica e a estratégia narrativa que irão se reproduzir por todo conjunto. Um casal goza da cara alheia, fingindo ser estrangeiros durante uma hospedagem numa cidade de veraneio. Até que vão jantar e encontram estrangeiros de verdade na mesma pousada, exclusivamente atendidos por mulheres em último estágio de gravidez. Os movimentos inesperados que o texto faz para concatenar os temas maternidade, apartamento e turismo indicam uma solução sinistra, que vai se desdobrar num desfecho ainda mais impactante. A escrita sempre oferece uma sensação incômoda de presságio, de que o leitor está posicionado de forma que não consegue distinguir aquilo que ganha corpo fora do quadro, e lhe cabe apenas esperar o baque da revelação.

VHS é o perfeito modelo estético dessa analogia. Estruturado em cortes de cenas mobilizadas pela simulação das teclas de um videocassete, o conto ocorre sobre a perspectiva de um homem que assiste gravações domésticas de sua família. O aniversário da filha, momentos com a esposa, parentes aleatórios… Então, frases e condutas dão indício de que nem tudo é o que parece, preparando para a reviravolta nas últimas frases. Tal engenharia se torna uma marca inconfundível, cujo artifício de sacar a história secreta num golpe de desconcerto funciona em intensidades variadas. A namorada turca, sobre um sujeito que conhece uma mulher pela internet e manda o irmão conferir se não é cilada, tem a picardia das crônicas rodriguianas, enquanto Seis da manhã no Fritos Lanche, a madrugada agitada de uma lanchonete em que a presença de uma mulher com uma criança que nunca acorda gera estranheza, instala nonsense no que deveria ser empatia pela tragédia urbana. Já Assombração, no qual um cara invade a casa da ex-namorada para retomar certos itens, flerta com o pós-terror, uma tensão sobrenatural apoiada num esteio crítico.

Careta ao politicamente correto
Para uma antologia que transforma a unidade temática em modo de condução, esse conto marcaria um ponto de ruptura no qual a irreverência e a careta ao politicamente correto poderiam se dobrar a uma certa catequese ideológica. Por sorte, a autora escapa dessa armadilha, temperando as narrativas seguintes com comentários sociais, porém sem dessaborar os componentes originais. No ótimo Entre paredes, uma filha retorna para casa humilde que divide com o pai, trazendo no rosto marcas vivas de uma agressão. O velho homem pergunta se ela não prefere fazer uma denúncia, e a negação dá partida a um testemunho lento, como se sussurrado, em que lembranças e detalhes prosaicos irão construir uma escalada de suspense até o desvelar de um fim implícito, e por isso mesmo chocante e perverso. Fica claro que se trata de uma manifestação contra a violência à mulher, mas sem bandeiras e panfletos, estabelecendo a verve de protesto no efeito da surpresa.

Cinco-dois e Profs seguem no universo feminino, embora em frequências distintas. Enquanto o primeiro é um relato internalizado sobre autodescoberta, o segundo usa do escracho para comandar a postura de uma professora diante de uma incorreção. Voltando aos registros de violência, Na foto ela sorria toca no assombro moralista de que a crueldade masculina se reserva a determinadas classes sociais, ao passo que o aflitivo Farpa é uma mensagem eletrônica na qual se relata abuso infantil de forma lacunar, nunca ficando transparente se é uma denúncia ou uma confissão. As possibilidades de interpretação têm muito mais potência que a descrição gráfica. Se por um lado isso pode soar sádico, por outro não deixa de ser literatura de boa qualidade.

Alguns contos, contudo, são menos inspirados. Estão longe de ser ruins, mas dão a impressão de estarem ali para fazer volume. A subtração de três ou quatro textos certamente deixaria o conjunto mais coeso, especialmente quando certas experimentações evidenciam o caráter incipiente dos exercícios de escrita. Ainda assim, a qualidade geral compensa tais baixas como se fossem leves desvios de um circuito bem afinado cujas variações de temas e ideias nunca descaracterizam seu movimento identitário. Isso fica claro na decisão de posicionar o mais robusto (e melhor) conto no fim do livro. O homem dentro do vidro trata de um faxineiro que fica responsável pela limpeza do setor de um hospital, onde se depara com um jarro contendo uma cabeça humana partida ao meio. O convívio com o grotesco, então, vai lhe resgatar memórias e, através da associação com uma ausência em sua infância, desencadear uma descoberta das mais apavorantes.

A certa altura, o protagonista comenta que o cheiro de formol do ambiente, que lhe deixava a princípio nauseado, já não incomodava; que se tornou “familiar, reconfortante”, um estímulo para “seus pensamentos correrem livres”. A experiência com os contos de Tudo meio horrível deixa a mesma sensação: situações desconfortáveis e atos descabidos que, no estouro da perplexidade, vão se desaforando do espanto, do contra-ataque de repúdio, e sendo incorporadas por uma comicidade incidental, uma ironia trágica diante do absurdo, que faz com que o leitor não saiba bem como reagir, e ri sem querer, meio com culpa; ri de nervoso.

Tudo meio horrível
Nathalie Lourenço
Caos & Letras
136 págs.
Nathalie Lourenço
É escritora e publicitária. Pós-graduada em Formação de Escritores pelo Instituto Vera Cruz. Integra o Coletivo Discórdia, coletivo literário proveniente do Clipe, curso de escrita da Casa das Rosas. Lançou, em 2017, a coletânea de contos Morri por educação (Oito e Meio) e, em 2021, o livro de contos de ficção científica Sabor idêntico ao natural (Vacatussa). Escreve crônicas na plataforma Árvore de Livros, incluindo o e-book infantil O incidente do cocô voador e outras crônicas, além de minicontos no perfil do Instagram @Histórias_Bermudas.
Sérgio Tavares

Nasceu em 1978. É autor de Cavala, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, publicado em Portugal com o título Equação sobre o abismo. Também publicou Queda da própria altura, antologia finalista do Prêmio Brasília de Literatura. Alguns dos seus contos foram traduzidos para o inglês, o italiano, o japonês, o espanhol e o tâmil. Escreve sobre literatura brasileira e hispano-americana para jornais e revistas, além de editar o site A Nova Crítica.

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