Roland Barthes define “a dialética particular da carta de amor” como algo ao mesmo tempo vazio (codificação) e expressivo (cheio de desejo de significar). Só tendo em vista esse aparente paradoxo, será possível ler a coletânea Para sempre: 50 cartas de amor de todos os tempos, organizada por Emerson Tin, com o interesse sempre renovado que a obra sugere. São cartas, em sua maioria carregadas de lugares-comuns e de uma simplicidade pueril, que lançam o leitor mais exigente num grande vazio de significação. Vejamos esse pequeno trecho de uma carta de Cícero para a mulher e os filhos: “Eu lhes mando cartas menos freqüentemente do que posso porque (…) sou acometido de lágrimas, quando eu escrevo para vocês ou leio as suas cartas, de tal modo que não posso suportar. Oxalá tivéssemos sido menos desejosos de viver!”. Nada mais simples do que o primeiro período; o óbvio, quando objeto escrito, muitas vezes beira a pieguice. Entretanto, é preciso dizer da saudade e da dor da distância com o que o código lingüístico oferece de banalidade. Já o segundo período do trecho, apesar da exclamação lamuriosa, oferece, na entonação e na própria formulação da frase, um espaço para expressar desejos mais elaborados, ainda que fazendo uso de uma retórica apelativa.
O outro lado da moeda é a carga de expressividade que se pode encontrar, se levarmos em conta o quanto o desejo de significar está latente em cada palavra, pausa ou frase. Falar do desejo, exaltar a paixão em seus encantos e angústias, é um contraponto que dialoga com o vazio deixado pela necessidade e pelas limitações do dizer de afetos, na tentativa de construir sentidos.
Na carta de Tsui Inging, uma chinesa do século 8, dirigida a um escritor e poeta da Dinastia Tang (618-907), há a busca explícita de simbologias para socorrê-la na manifestação escrita do seu amor:
Estou lhe enviando um anel de jade que usei quando criança (…) O jade simboliza a integridade do nosso amor, e a sua forma circular representa a infinitude dos meus sentimentos (…) São coisas simples, carregadas de significados, lembrando a esperança de que nosso amor seja imaculado como o jade e contínuo como o anel… Esses objetos são testemunhos do nosso amor. Meu coração está contigo, embora meu corpo esteja longe.
Lê-las exige uma cumplicidade com quem as escreve e a compreensão inicial de um pacto que há de considerar que “querer escrever o amor é enfrentar a desordem da linguagem: essa região tumultuada onde a linguagem é ao mesmo tempo demais e demasiadamente pouca”, como constatava Barthes em seu Fragmentos de um discurso amoroso. A linguagem se apresenta como “demais” porque, ao dar vazão “a uma expansão ilimitada do eu, pela submersão emotiva”, permite a explosão de desejos e paixões incontroláveis, o que só se torna possível a partir da aceitação de transitar nesta tumultuada região e correr todos os riscos da incomunicabilidade. Por outro lado, é “demasiadamente pouca” porque “os códigos sobre os quais o amor a projeta e a nivela” a tornam previsível, repetitiva e, conseqüentemente, empobrecida.
IndizívelOs autores desses textos são figuras de notoriedade pública. Estão ordenados cronologicamente, tendo como base as datas de seus nascimentos. Isto permite uma abrangência panorâmica que se estende de Cícero (106 a.C-43 a.C), filósofo romano, a Vladimir Maiakóvski, poeta russo (1893-1930). Cada carta é antecedida por uma breve biografia de seu autor e por referências ao ser amado a quem foi endereçada. Isso possibilita uma contextualização histórica mais geral, assim como ajuda a direcionar a leitura, no que se refere a suas peculiaridades humanas, pessoais e autorais.
É possível, a partir desses dados, compará-las e daí extrair suas diferenças e pontos de proximidade. Dentre estes pontos, a impotência de uma efetiva comunicação constitui uma das angústias de quem busca partilhar com o outro tantos sentimentos. A palavra é tudo que se tem. Dentro de seus códigos é que se encontram os recursos da tarefa de dizer o indizível e, neste sentido, é sempre insuficiente.
Ludwig van Beethoven (1770-1827), em uma carta à amada, esboça essa preocupação: “Meu peito está repleto de coisas para te dizer. Ah! Algumas vezes penso que a palavra não serve para absolutamente nada. Força e coragem! Seja sempre meu mais fiel e único tesouro, meu tudo, como sou para ti”. Ainda bem que só algumas vezes a palavra parece não servir para absolutamente nada, senão nada se escreveria. Afinal, é ela tudo que se tem para dizer do passado, do presente e do futuro. Assim, Beethoven prossegue: “E quanto ao que nos está reservado, os deuses tratarão de enviá-lo!”.
Joseph-François Angelloz, prefaciando Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, observa: “A carta se presta ao relato tanto quanto o romance, e tanto à explosão lírica quanto a poesia. Aliás, certas cartas são verdadeiros poemas em prosa”. É nesse sentido que a tipologia textual de uma carta é híbrida. Comporta a marca narrativa, na qual o relato de fatos e suas ações é um eixo importante, e busca a expressão de um sujeito lírico apaixonado. Com relação à maneira de lidar com o tempo, ainda afirma: “A carta não está ligada ao tempo da narrativa épica que é o passado, ou ao presente, que é o tempo do lirismo… Ela não tem como condição a distância temporal que se impõe numa crônica, nem a ausência de distância, que permite a expressão poética.”
Ora, sendo assim, a temporalidade não teria relevância nesse contexto de correspondência? Parece que não se trata exatamente disso, mas, sim, de ressaltar a questão da espacialidade que separa amigos ou amantes como um fator determinante para a viabilização da escrita epistolar. Ou seja, “o que importa é a distância espacial, o afastamento do amigo, que cria entre os dois correspondentes uma tensão comparável à do teatro”. A dramatização da ausência e toda a necessidade de aproximação se dão mais numa perspectiva espacial do que propriamente temporal. A tensão estabelecida na dramatização da angústia da distância espacial pode também ser lida na ansiedade com que se contam os dias para se ter notícias ou para se zerar a distância física. Portanto, não se pode deixar de considerar o tempo como um fator, se não determinante, pelo menos importante na sua articulação com a espacialidade.
Sem resposta
Em carta de Franz Kafka à sua noiva Felice, ele descreve sua ansiedade como um personagem num palco: “(…) nada é mais fácil de entender do que uma carta que não chega hoje. Mas o que eu faço? Pairo pelos corredores, olho na mão de todos os mensageiros, dou ordens desnecessárias simplesmente para mandar alguém descer, exclusivamente para ver a correspondência.” O autor de O processo, na posição de chefe de um departamento burocrático de poder, mobiliza seus subalternos para atender suas demandas pessoais, e entra em cena em um espaço de representação mais amplo do que sua própria escrita.
Qualquer carta de amor exige correspondência, ou seja, retorno, partilha de vivências, experiências e sensações. Daí o desespero da ausência de respostas que se manifesta na grande parte desses tipos de discursos amorosos. O mais racional dos homens está sujeito a isso quando se aventura nesses meandros afetivos. Numa carta à sua noiva, citada por Barthes, e não incluída na coletânea, Freud desabafa: “Não quero, porém, que minhas cartas fiquem sempre sem resposta, e não te escreverei mais se você não me responder.” A afirmativa categórica é mais que mera chantagem emocional. O pai da psicanálise justifica a tomada de decisão anterior, partindo da seguinte premissa: “Eternos monólogos sobre um ser amado, que não são nem ratificados, nem alimentados pelo ser amado, acabam em idéias falsas sobre as relações mútuas e nos tornarão estranhos um ao outro quando nos encontrarmos novamente”.
A ausência de resposta torna a correspondência não mais dialógica como era de se esperar, interrompe a possibilidade de comunicação, vira simples monólogo que, por sua perspectiva unilateral, não constrói relações mútuas, ou, como Freud afirma acima, cria idéias falsas sobre o outro e sobre a afetividade vivida. Conseqüentemente, o estranhamento se instala. Por outro lado, a resposta alimenta a relação, fortalece laços, estabelece o diálogo e se transforma em crescente alegria. É o que se pode perceber em Augusto dos Anjos (1884-1914): “Minha querida Ester,/ Sua cartinha de 16 deste mês produziu em minha alma um verdadeiro conforto definitivo”.
Pedro I também se rejubila com o retorno de sua correspondência pela Marquesa de Santos: “Cara Titilia,/ Foi inexplicável o prazer que tive com as suas duas cartas./ Aceite abraços e beijos e fo…”/ Deste seu amante que suspira pela ver cá o quanto antes, O Demonão”. Essa manifestação de desejo implícita nas despedidas entre abraços e beijos e fodas e reticências dá um tom de humor, estabelecendo um certo equilíbrio entre os aspectos do cotidiano e as formalidades esperadas da correspondência de um príncipe à sua amada.
Mal traçadas linhas
“Minha querida e adorada noiva, eu te amo cada vez mais ardentemente; e minha alma, meus pensamentos, minhas saudades e os beijos que eu sonho são sempre daquela formosa, pura e cara MARIA AUGUSTA, de quem tenho verdadeiro orgulho em ser noivo do coração.” Para os leitores de Rui Barbosa, a leitura desta sua carta poderia provocar desapontamentos, ou, aos nossos contemporâneos, suscitar os versos de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa): “Todas as cartas de amor são/ Ridículas”.
Contudo, como analisa Renato Janine Ribeiro, no prefácio de Para sempre, com todas as variantes que se apresentam nesse “leque interessante de cartas de escritores”, algo as torna absolutamente próximas. Para isso, é preciso “ver que o ridículo, que paira sobre as cartas, é apenas um dos nomes para o que é mais íntimo na condição humana”, ou seja, na sua intimidade, qualquer grande homem é menino, impotente, frágil ou mesmo ridículo. Só se torna possível livrar-se, momentaneamente, dessa fragilidade ou dessa condição, quando se mergulha na paixão de tentar descrever essa aventura. Ao rabiscar essas mal traçadas linhas, assumindo todos os riscos de se perder nessa região tumultuada da linguagem, é que o escritor de uma carta de amor transforma toda a sua fragilidade em força efetiva de vida e expressão. Fazemos nossas as palavras do poeta: “Mas, afinal/ Só as criaturas que nunca escreveram/ Cartas de amor/ é que são/ Ridículas.”