A história é antiga. Desde os idos de 1969 quando o crítico Antonio Candido, membro da comissão julgadora do II Concurso Nacional de Contos do Paraná, escreveu que “a sua força está no diálogo e, também, na absoluta pureza de sua linguagem”, a cada novo livro de Luiz Vilela se busca o encanto do diálogo. Na novela que acaba de lançar, Bóris e Dóris, a recorrência não poderia ficar de fora, até porque trata-se, basicamente, de dois longos diálogos de um casal em um hotel.
Mas Vilela não é um escritor de facilidades, com apenas o predicado de construir excelentes diálogos. Suas buscas e ânsias têm raízes mais profundas. Teve até seu momento revolucionário. Entre os meados das décadas de 1960 e 1970, viveu de intensidades. Belo Horizonte, São Paulo, Estados Unidos, Europa e a volta para Belo Horizonte. Foi também protagonista de polêmicas.
“Em 1967, aos 24 anos, depois de ser recusado por vários editores, Luiz Vilela publicou, à própria custa, em edição graficamente modesta e de apenas mil exemplares, seu primeiro livro, de contos, Tremor de terra. Mandou-o então para um concurso literário em Brasília, e o livro ganhou o Prêmio Nacional de Ficção, disputando com 250 escritores, entre os quais diversos monstros sagrados da literatura brasileira, como Mário Palmério e Osman Lins. José Condé, que também concorria e estava presente ao anúncio do prêmio, feito no encerramento da Semana do Escritor, que se realizava todo ano na capital federal, levantou-se, acusou a comissão julgadora de fazer ‘molecagem’ e se retirou da sala. Outro escritor, José Geraldo Vieira, também inconformado com o resultado e que estava tão certo de ganhar o prêmio que já levara o discurso de agradecimento, perguntou à comissão julgadora se aquele concurso era destinado a ‘aposentar autores de obra feita e premiar meninos saídos da creche’. Comentando mais tarde o fato em seu livro Situações da ficção brasileira, Fausto Cunha, que fizera parte da comissão julgadora, disse: ‘os mais novos empurram implacavelmente os mais velhos para a história ou para o lixo’.” É o que se conta na biografia do autor publicada no final de Bóris e Dóris.
Passadas as revoluções pessoais, Vilela sentiu que seu mundo era tomar o retorno a Ituiutaba, Minas Gerais, onde nasceu e até hoje vive criando vaca leiteira e literatura. Tudo fez em favor dessa obra capaz de despertar ódios e paixões. Um poder nascido do fato de ser o texto um imenso reflexo das mutações acontecidas nesta urgente mudança de séculos que vivemos.
Se não, vejamos.
Voltando à questão do diálogo, ele surge na ficção de Vilela como forma de deixá-la mais direta, simples e rápida. Não para atender ao que se poderia chamar de antecipação da forma que encanta os jovens autores. Eles, os autores de agora, buscam a rapidez, o parcelamento da prosa, o discurso quase gago — tantos são os pontos e vírgulas — como uma representação do caos urbano e destes tempos de múltiplas velocidades. Vilela está preocupado com questões mais profundas.
Quando, ainda aos treze anos, descobriu Graciliano Ramos ficou fascinado pela prosa seca, dura e plenamente descarnada do sertanejo. E aprendeu que era possível escrever de maneira radicalmente contrária aos cânones estipulados pelo classicismo realista de José de Alencar e Raul Pompéia, por exemplo. Daí optou pela mágica coloquial do diálogo. Ou seja, Vilela aprendeu a conversar com Graciliano Ramos, um homem de pouca conversa.
No entanto, como mostram os contos de Tremor de terra, o diálogo nasceu como monólogo. No princípio apenas o narrador falava num debulhar de desesperos ritmado e coloquial. Seu texto vinha carregado do legado de Paulo Honório de São Bernardo e Luís da Silva de Angústia. Mas aqui estamos no trampolim, no ponto de apoio para um salto maior, onde a linguagem — essa agora de Luiz Vilela — ganha cores e vidas próprias. Ela fica cada vez mais sintética e coloquial não como concessão ao leitor, mas como necessidade de se aproximar de uma realidade cada vez menos receptiva aos diálogos, uma realidade quase monossilábica e fortemente angustiante.
Foi também possivelmente na leitura desse realismo agrário e social de Graciliano Ramos que aprendeu a refletir sobre a alma humana — uma expressão que guarda lá suas redundâncias. Mas, enfim, todo este caldo — diálogo intenso, reflexão social, atualidade, marcas de vivências — impregna Bóris e Dóris. Eles, os protagonistas, parecem vindos de outras esferas. São um encontro de contradições. Há diferenças de idade e de sentidos. Há o trabalho e o ócio, o pragmatismo e o sonho, a ambição e o vazio. E tudo no princípio parece tão óbvio, pois o enredo aponta para o bem-sucedido homem de negócio que casa com uma mulher mais jovem e bela e a trata como uma propriedade qualquer.
Só que novamente nasce a falta de facilidades da prosa de Luiz Vilela. Primeiro há o tempo e ele é múltiplo. A novela se passa num pedaço de manhã e num resto de noite. Bóris se mostra sempre preocupado com o seu tempo pessoal, com a angústia de não se atrasar para a convenção do grupo empresarial a que pertence. Dóris com o excesso de tempo de sua vida ociosa. Os dois se conciliam no medo do envelhecimento implacável e no que fizeram de suas vidas. E aí Bóris, tão senhor de seu momento, sente o dissabor de quem não tem o domínio sobre tudo.
Depois vem o espaço. No concreto da narrativa todo espaço está restrito ao hotel-fazenda, ou melhor, ao salão do café-da-manhã e ao quarto onde está hospedado o casal. Nas lembranças dos dois os espaços se ampliam, mas sempre na necessidade de analisar momentos e definições de suas vidas. E no final este espaço está limitado a um mundo pequeno e mesquinho, pois em torno dele transitam pessoas que independem das decisões e necessidades do casal. O rapaz da recepção, a senhora misteriosa, as duas moças vizinhas de mesa, os amigos do grupo empresarial, o irmão de Bóris.
Num diálogo direto e sem malabarismos retóricos, Luiz Vilela traça vidas e reflete sobre as contradições entre sonhos e ambições. Bóris ambiciona enquanto Dóris sonha. E juntos, aos poucos, perdem as esperanças. São a síntese de um mundo sem perdões. Enfim, Vilela prossegue na marcha de suas revoluções pessoais.