Revolução em forma de mulher

Reedição de "Parque industrial", primeiro romance proletário do Brasil, e lançamento de "Pagu no metrô", de Adriana Armony, põem a emblemática Patrícia Galvão em cena novamente
Ilustração: Dê Almeida
01/05/2022

Patrícia Galvão se tornou Pagu por um equívoco de Raul Bopp. O poeta gaúcho acreditava que o sobrenome de Patrícia era Goulart, o que explica a segunda sílaba do célebre apelido, registrado no poema O coco de Pagu. Mas Bopp não sabia que a homenagem à amiga, alçada ao posto de musa dos modernistas, imortalizaria a alcunha de uma das mais emblemáticas figuras culturais brasileiras.

Efervescente, Pagu causou um estrondo nos âmbitos literários e políticos do país, em um período de grandes insurreições culturais, com o advento do Modernismo — já consolidado na Europa — e da revalorização da cultura nacional. Uma revolução em forma de mulher, Patrícia Galvão ganha, no centenário da Semana de Arte Moderna, dois lançamentos que gravitam em seu entorno.

O primeiro, Parque industrial, é seu romance de estreia. Escrito quando a autora tinha 22 anos, o livro foi publicado com o pseudônimo de Mara Lobo — uma das muitas faces de Patrícia Galvão. Já em Pagu no metrô, a escritora e pesquisadora Adriana Armony desvenda a temporada que a militante brasileira passou na França, em uma obra que transita entre o biográfico e o ficcional.

Os dois livros desvelam a trajetória da pioneira Pagu. Considerada polêmica por seus afetos, agora a escritora e militante é colocada nos holofotes por causa de sua produção intelectual, em um bem-vindo revisionismo histórico.

Antes, é preciso fazer uma observação. Patrícia Galvão não participou da Semana de Arte Moderna. Nascida em 1910, ela tinha apenas doze anos quando o evento aconteceu. Isso não impediu, contudo, que Pagu bebesse na fonte dos modernistas de 22, de modo que a autora foi uma entusiasta do movimento antropofágico. Quando perguntada sobre o que pensa da antropofagia, ela rebateu: “Eu não penso: eu gosto”.

Romance proletário
“São Paulo é o maior parque industrial da América do Sul.” Assim se apresenta Parque industrial, publicado em 1933. Primeiro romance proletário brasileiro, o livro se debruça no cotidiano das operárias do Brás. Pagu nos oferece um narrador com pleno entendimento da realidade feminina dentro do capitalismo. Apesar da distância anunciada pela terceira pessoa, a voz do texto compreende os amores e desejos das mulheres proletárias, bem como as suas lutas e reivindicações.

O comunismo, estrela guia de Pagu — a ideologia que norteou a maior parte da sua vida política — está fundido na urdidura da trama. Quadros vívidos da mesquinhez burguesa e da hipocrisia da classe dominante são pintados pelo narrador, em confronto com a postura combativa das mulheres proletárias. O erotismo é um bom exemplo da régua moral burguesa. A exploração dos desejos é permitida apenas àqueles, e em especial àquelas, que estão no topo da pirâmide social.

A imigrante Rosinha Lituana vê a atividade sindical como salvação, mas acaba expatriada por causa de sua militância. Corina é demitida quando descobrem sua gravidez e precisa se prostituir para garantir o sustento. É condenada, ainda, pelo nascimento do filho natimorto. A normalista Eleonora se torna a “madame Alfredo Rocha” e “passa com ele as portas de ouro da grande burguesia”. Após o casamento, contudo, esboça um relacionamento lésbico com a amiga Matilde. Já Alfredo abandona a esposa para ir atrás do idealismo político de Otávia. Ela, por sua vez, trai o companheiro — a favor do Partido que o acusa de Trotskismo.

É certo que a dicotomia entre a vilania dos que mandam no capital e a elevação dos que não se submetem a essa lógica impede uma possível complexidade do enredo. Entretanto, não estamos diante de um romance psicológico, composto com artífices como o fluxo de consciência, a exemplo do modernismo europeu. Em Parque industrial, não há espaço para grandes mergulhos na interioridade das personagens, de modo que o idealismo se expressa na demonstração crua da realidade social.

Termos estéticos
O romance de Pagu segue a tendência da década de 1930 de destacar o recrudescimento das forças ideológicas. Ainda que Parque industrial possa ser visto como uma contraposição à Geração de 30, por focar na realidade urbana e na metrópole em profusão, o livro se localiza dentro dos moldes de seu decênio no que se refere ao teor de denúncia social. Pagu nos coloca, então, diante do neorrealismo.

O Brás de Rosinha Lituana, Otávia, Corina e Eleonora ressoa, em passagens, O cortiço de Aluísio Azevedo. De fora da perspectiva do Sudeste, pode-se pensar em Parque industrial como uma espécie de regionalismo paulistano. Com a crueza de um Graciliano Ramos, e alguns tons a mais de ousadia, semelhante à crônica de costumes de Nelson Rodrigues, Pagu expõe as condições do sexo feminino dentro do capitalismo, sem medo de cair em um romance panfletário.

Em termos estéticos, Pagu se vale das vanguardas europeias. Em especial, do futurismo. Enquanto as operárias das fábricas têxteis do Brás trabalham em seus teares, Galvão tece a urdidura de seu panorama da vida proletária. No melhor artífice literário da obra, a velocidade do romance traduz a vida na metrópole em ascensão e o ritmo das fábricas, com suas frases curtas e caráter fragmentário, como cortes de um filme fotográfico.

A tradição do romance proletário passa por grandes nomes como Isaac Babel e John dos Passos, desaguando no Brasil, para além de Pagu, em Jorge Amado. A literatura socialmente engajada conta ainda com Émile Zola, Charles Dickens e Ivan Turguêniev. Outros falharam ao recair na exacerbação do documento social, como o russo Nikolay Chernyshevsky, autor do malvisto Que fazer? (1863).

Não é o caso de Patrícia Galvão. Criticada por alas do Partido Comunista por causa de sua militância, que se voltava à situação feminina, e vista com desconfianças por suas origens burguesas, Pagu conheceu a realidade sobre a qual escreveu ao se mudar para uma vila operária em 1932, semelhante à francófona Simone Weil.

Visões de Pagu
Em 1934, uma brasileira chega em terras francesas. O país, palco de grandes revoluções e de manifestos inflamados, parece ser o cenário ideal para uma figura como Patrícia Galvão. Um ano após a publicação de Parque industrial, é para lá que Pagu vai, em estadia que se estende até 1935. Os anos que a escritora e militante política passou em Paris são o tema de Pagu no metrô, romance de Adriana Armony.

Em paralelo com a trajetória de Pagu, apresentada na acurada pesquisa de Armony, conhecemos também a autora, que se coloca como narradora e personagem dentro do texto. Entre fatos como as manifestações dos Gilets Jaunes e o incêndio na Catedral de Notre-Dame, temos relatos e encontros que podem muito bem ser puramente ficção, mas que dão uma nova camada ao romance, de modo que seguimos os passos de Armony com o mesmo gosto com que ela persegue os rastros de Pagu.

O livro adquire contornos quase investigativos, em referência às narrativas que Patrícia Galvão escreveu para a revista Detective, editada por Nelson Rodrigues. Como boa pesquisadora, Armony traz à luz detalhes da ligação de Pagu com os surrealistas franceses, como René Crevel e André Breton, e os embates entre esses artistas e o Partido Comunista. Como boa ficcionista, incorpora traços do surrealismo dentro de sua obra, com visões de Pagu espalhadas por vagões de metrô e por sonhos intranquilos.

A velocidade futurista, própria da literatura estreante de Galvão, também marca as páginas do romance de Armony. A trama segue bem conduzida entre a efemeridade da Paris em movimento e as necessárias explicações acerca do percurso intelectual e biográfico de Patrícia Galvão.

O título do romance evoca o jovem clássico Zazie no metrô (1959), de Raymond Queneau. O francês, assim como Galvão, foi próximo dos surrealistas, e sua icônica personagem é considerada uma menina malcomportada, rótulo que muitas vezes foi também atribuído à Pagu.

“De novo no metrô, estação République.” Com esta sentença, Armony introduz sua narrativa. As linhas de metrô são mais do que o meio que leva a autora até as fontes de sua pesquisa. São também o cenário dos encontros imaginários com Pagu, e o símbolo da intricada malha de conexões que Armony encontra em sua investigação. Pouco importa se estamos diante de uma obra de ficção ou não ficção, ou se Armony é autora ou narradora-personagem. O que nos interessa é a devoção apaixonada com que ela persegue a figura de Pagu.

A redescoberta de Patrícia Galvão, mais de um século após o seu nascimento, impulsiona a edição dos escritos da autora, assim como a produção de obras sobre ela. Se Parque industrial é colocado como “um documento social e literário” e Pagu no metrô está entre a biografia e a ficção, as duas obras nos mostram a renovação da literatura, incapaz de se restringir a rótulos. Assim também é Pagu, a versátil mulher de muitos nomes por trás do batom púrpura.

Parque industrial
Pagu
Companhia das Letras
112 págs.
Pagu no metrô
Adriana Armony
Nós
144 págs.
Patrícia Galvão
Mais conhecida como Pagu, nasceu em 1910, em São João da Boa Vista (SP). Natural de uma família abastada, foi escritora, jornalista e militante comunista. Em 1933, publica o romance Parque industrial, considerado o primeiro romance proletário nacional. Morreu em 1962, com apenas 52 anos.
Giovana Proença

É pesquisadora na área de Teoria Literária da USP.

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