Revolução editorial anunciada

Depois de 11 anos de silêncio, a Criar reabre as portas e reinicia o trabalho de valorização da literatura e atenção a bons escritores negliegenciados pelo mercado editorial
Dalton Trevisan, autor de “Pico na veia”
01/11/2000

Nos últimos anos, para surpresa até dos céticos, Curitiba tornou-se a “capital literária” brasileira. Na ExpoLivro, realizada no início de setembro, o stand dos Autores Paranaenses foi um dos mais visitados, registrando 40 livros vendidos por dia. E não foram apenas as “grifes” literárias (Dalton Trevisan, Helena Kolody e Paulo Leminski) que atraíram os leitores. O exigente público curitibano — que poderia ter optado por clássicos ou nomes em evidência na mídia — consumiu autores locais, tanto os experimentalistas (Manoel Carlos Karam, Valêncio Xavier e Wilson Bueno) quanto os poetas (Alice Ruiz, Miguel Sanches Neto e Ricardo Corona) e também os prosadores (Cristovão Tezza, Domingos Pellegrini, Ernani Buchmann, Jamil Snege e Roberto Gomes). Entre os mais de 200 títulos, havia opções para os mais variados paladares, incluindo textos de auto-ajuda, esoterismo, infanto-juvenil e estudos históricos.

Independentemente do conteúdo, os livros apresentam excelente produção visual e a maior parte foi lançado por editoras de outros Estados. Então, não é uma contradição afirmar que Curitiba é a “capital literária” se não existe nenhuma grande editora aqui? Excetuando aquelas que se dedicam ao segmento didático e infantil, a Travessa dos Editores (propriedade do jornalista político Fábio Campana) vem lançando obras de qualidade, e recentemente colocou duas obras-primas no mercado: Venho de um País Obscuro de Miguel Sanches Neto e Os Verões da Grande Leitoa Branca de Jamil Snege. No entanto, estes livros tiveram tiragem reduzida, distribuição ridícula, restringindo-se a um círculo de amigos e iniciados.

Com a finalidade de diminuir este vazio (se isso é possível), Roberto Gomes e sua esposa Iria Zanoni se uniram a Sírio Possenti e Jane Persinoti para reativar a Criar Edições — fenômeno editorial da década de 80. Em 1981, Cristovão Tezza, Iria Zanoni e Roberto Gomes fundaram uma editora batizada com as iniciais de seus nomes. A empresa curitibana estreou lançando o romance O Terrorista Lírico, de Tezza e o livro de contos Sabrina de Trotoar e de Tacape, de Gomes. Durante os oito anos de atividade, foram lançados mais de 50 títulos, e os destaques do catálogo são Nuvem Feliz, texto de literatura infantil assinado por Alice Ruiz; Anseios Crípticos, coletânea de artigos que Paulo Leminski publicou na imprensa; Bolero’s Bar, primeiro livro do experimental Wilson Bueno; e Maciste no Inferno, do então cineasta, videomaker e atual escritor experimentalista Valêncio Xavier.

Assim que o conselho editorial aprovava uma obra, recorda Roberto Gomes, a Criar arcava com todas as despesas de produção e de distribuição, e o autor recebia seus livros e o dinheiro dos direitos autorais — coisa rara em editoras pequenas. A “fora do eixo” teve sede própria e um quadro de oito funcionários fixos, além profissionais contratados para serviços especializados. Diversas capas foram assinadas pelos artistas plásticos Rettamozo, Rogério Dias e Solda. O professor universitário Paulo Venturelli passou muitas tardes da década de 80 lendo e selecionando originais enviados à Criar.

Publicar obras de ficção proporcionava prazer aos proprietários, mas eram os livros infantis que davam sustentação financeira à editora. O Menino que Descobriu o Sol, de Roberto Gomes, foi incluído no projeto Ciranda de Livros e teve tiragem de 35 mil exemplares. No entanto, a sucessão de planos econômicos e a inflação galopante da era Sarney fizeram com que praticamente todas as pequenas e médias editoras brasileiras fechassem as portas no final da década de 80, e a Criar não foi exceção. Em 1989, a “fora do eixo” encerrou suas atividades, sem nenhuma dívida e com muitos méritos, entre eles o fato de ter sido a primeira a editar Helena Kolody, que anteriormente havia publicado apenas edições caseiras.

Apostando na qualidade
Por mais que algumas pessoas insistam em não reconhecer: Paulo Leminski morreu em 1989, o maior crítico literário da língua portuguesa —Wilson Martins — voltou dos Estados Unidos em 1991, O Mez da Grippe de Valêncio Xavier foi editado pela Companhia das Letras em 1998, o concretista Décio Pignatari reside em Curitiba desde 1999, e o romance Chove Sobre Minha Infância — de Miguel Sanches Neto — está causando polêmica antes mesmo do lançamento. É óbvio que houve mudanças em Curitiba da década de 80 para cá. Conscientes destas, de outras transformações, e principalmente de que hoje há uma enorme produção de literatura, pesquisas históricas e estudo sociológicos, Roberto Gomes e seus três sócios decidiram retomar a Criar Edições.

Para marcar o retorno da “fora do eixo” estão sendo lançadas quatro obras com acabamento de primeira qualidade e tiragem de dois mil exemplares cada uma. Três delas trazem textos que vem sendo publicados aos domingos no suplemento Caderno G, da Gazeta do Povo. “Há três anos, o Jamil, o Dala Stella (afastado do jornal este ano) e eu fomos convidados para escrever crônicas na Gazeta. Com o passar do tempo, recolhemos e selecionamos os textos que parecem ter permanência e que se aproximam do formato do conto”, explica o editor da Criar. Já se encontram nas livrarias Alma de Bicho, de Roberto Gomes; Como Tornar-se Invisível em Curitiba, de Jamil Snege; e Riachuelo, 266, de Carlos Dala Stella – obras analisadas em primeira mão nesta edição do Rascunho. O outro título chama-se Mal Comportadas Línguas, coletânea de 39 textos que foram publicados recentemente no Jornal de Jundiaí (SP), nos quais Sírio Possenti, professor da Unicamp, discute questões lingüísticas.

Roberto Gomes esclarece que o objetivo da Criar é viabilizar produções de qualidade, não apenas de autores paranaenses, e avisa que todos os originais serão bem-vindos. No entanto, ele antecipa que recusará dissertações e teses — “obras escritas para serem lidas por quatro ou cinco pessoas” — e dará prioridade para literatura e textos que representem análises históricas, sociológicas, políticas e econômicas do Paraná ou do País. Diferentemente das grandes editoras do eixo Rio-São Paulo, que recentemente recusaram obras de Machado de Assis — enviadas como “originais” —, a Criar Edições receberá inéditos, que serão lidos e, caso sejam aprovados, poderão ser publicados. Basta lembrar que Wilson Bueno e Cristovão Tezza, hoje reconhecidos em todo o País, estrearam na “fora do eixo” nos anos oitenta.

Filho de um jornalista que mantinha a gráfica na própria casa em Blumenau, Roberto Gomes cresceu envolvido com a publicação de textos. Editou jornais e revistas enquanto estudante e professor universitário, escreveu mais de 10 obras (incluindo literatura infantil, contos, romances e o clássico Crítica da Razão Tupiniquim, que terá nova edição ampliada), e esteve à frente da editora da Universidade Federal do Paraná durante a década de 90. Com base nessa experiência, daqui para frente estará exclusivamente dedicado à Criar Edições. “Temos inúmeros projetos e a meta de lançar um livro por mês até 2001”. Uma revolução editorial está anunciada.

Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho