Revolução

Novo romance de Carlos Eduardo de Magalhães usa a ironia para explorar um mundo opressivo cercado de tragédias
Carlos Eduardo de Magalhães, autor de “Das coisas definitivas”
01/09/2023

Das coisas definitivas é um romance que procura se distanciar no tempo para tentar analisar com maior profundidade o momento presente. Durante muito tempo, estudiosos da literatura evitaram obras de escritores contemporâneos porque, imersos no mesmo mundo em que os autores viviam, seria impossível a análise sem o distanciamento necessário. Por outro lado, alguns críticos foram bem-sucedidos na escolha de obras relevantes que retratam o calor da hora, livrando-se de erros de avaliação.

Os favoráveis ao distanciamento temporal como método de julgamento da obra não deixaram de cometer os seus erros, esquecendo autores que seriam ressuscitados para a leitura muitos anos depois. Ambas as linhas de crítica possuem prós e contras, mas o saldo devido à existência de ambas acaba sendo sempre positivo.

Tudo isso para falar sobre o novo romance de Carlos Eduardo de Magalhães, autor que anda sempre entre os finalistas nos concursos dos prêmios literários. Das coisas definitivas começa duzentos anos à frente da nossa época. O objetivo é apresentar a tese de doutorado de um personagem-escritor, Gonçalo Ching de Souza, cujo conteúdo trataria

de que os eventos ocorridos no fim da primeira metade do século XXI e as mudanças do modo de vida da grande maioria dos seres humanos, que resultaram no que se convencionou chamar de Novo Mundo, tiveram sua gênese no Brasil. Não foi, segundo ele, um desfecho de fatos históricos que se sucederam…

O autor vai atribuir tal feito a “Takashi Makaoka, um brasileiro de ascendência japonesa”. Gonçalo Ching, o autor da tese, a teria defendido diante de uma banca composta pelos seguintes avaliadores: “uma pessoa de cada continente e duas máquinas de inteligência acadêmica”.

Diante do exposto nas primeiras três páginas do romance, já se percebe o mundo futuro estabelecido pelo narrador, sobre o qual ele nos revela muito pouco. Os nomes dos personagens, como Ching e Makaoka, a presença da inteligência artificial, o aparecimento de outro personagem com a profissão de desconstrutor, João Robert da Cruz Bamalaris — a população mundial diminuiu muito e muitas grandes obras do passado precisam ser desmontadas — são reveladores. Ainda há uma tentativa de explicação da organização política destes duzentos anos à frente: São Paulo e Rio de Janeiro seriam filiados às federações do Brasil e Sul-Americana.

Deste ponto em diante, Bamalaris vai atuar, na maior parte do livro, como o foco da narrativa, porque está a fazer a leitura da tese, que é o estopim de toda a história, junto com a de outro livro muito famoso no início do século 21, cujo autor seria Carlos José Dansseto, narrador de uma história da família de revolucionários que teria resistido à ditadura militar.

Das coisas definitivas explorará as relações entre esses familiares, da qual Takashi Makaoka passa a fazer parte através do casamento com a filha de quem seria o grande homem, Júlio Dansseto, o famoso revolucionário do período.

As questões impostas pelo livro são mais importantes do que a história propriamente narrada. Há a presença constante da tragédia e da morte através de um suicídio inexplicado, cometido por uma pessoa da família, há o vício em drogas pesadas, a vida numa espécie de Cracolândia que nos é contemporânea, a presença do mundo digital é muito opressora e a cultura de massa, catapultada pelas redes sociais, é capaz de levar um personagem à loucura.

Estrutura barroca
O problema que vejo no romance não se trata propriamente de uma crítica a sua construção, mas a estrutura barroca utilizada pelo autor, com muitas voltas, idas e vindas, exige muito dos leitores. Sabe-se que a verdadeira literatura não é para o leitor comum, infelizmente, mas na história dessa arte às vezes tão usurpada já houve e há escritores que conseguem traduzir em miúdos questões complexas.

Mais uma vez se aproveitam referências à ditadura militar, o que não deixa de ser muito importante, porque os males praticados por ela nos trazem graves consequências até hoje e muitas pessoas, despossuídas do conhecimento histórico, se deixam levar por histéricos histriônicos de plantão, que tendem a ver numa metralhadora a solução de problemas que afligem a humanidade desde o começo da sua existência.

Importante falar sobre o processo histórico, porque, ao mesmo tempo em que se defende o conhecimento do passado como meio de se livrar dos problemas repetidos em tempos vindouros e da luta de classes como elemento propulsor da liberdade, o autor acaba por optar pelo abandono de tais mecanismos atribuindo a vida no Novo Mundo, duzentos anos à frente, como produto da astúcia de um homem, um brasileiro de nome japonês. Creio que, seguindo o nosso grande mestre da literatura, Joaquim Maria Machado de Assis, Magalhães utiliza-se do ardil preferido pelo autor de Dom Casmurro: a ironia.

Embora não toque diretamente no assunto, o romance, por meio da postura de João Robert da Cruz Bamalaris, discute a problemática da leitura. O mundo digital também é muito presente, tendo como contraponto o apagar dos arquivos mencionado algumas vezes, apagar este a que a tal tese sobrevive. Talvez poderíamos entender que, num mundo regido por um futuro digital, onde predomine o julgamento promovido por inteligências artificiais, o que se referisse à angústia sentida por nós, humanos, não seria considerado pelas máquinas ditas inteligentes. Isso nos levaria a acreditar na necessidade cada vez maior da capacidade de leitura exercida por todas as pessoas como método de examinar a verdade e de discutir a problemática verdadeiramente humana.

Desse modo, Das coisas definitivas não revelaria um universo de coisas tão definitivas assim, apontando-nos uma concepção de vida que não devemos abandonar ou relegar às máquinas. É bom lembrar que a literatura não deve fazer profecias nem levantar faróis. Quem é o escritor para saber mais do que o restante dos homens?

Das coisas definitivas
Carlos Eduardo de Magalhães
Record
318 págs.
Carlos Eduardo de Magalhães
Nasceu em 1967, em São Paulo (SP), cidade onde mora, e tem por ofício a literatura. Seus romances Super-homem, não-homem, Carol e os invisíveis (2015), semifinalista do Prêmio Oceanos, Petrolina (2017) e Os jacarés (2001) foram selecionados como obras literárias pelo FNDE para o PNLD. Tem trabalhos traduzidos para o inglês, o espanhol e o búlgaro. Das coisas definitivas é o seu 12º livro publicado.
Haron Gamal

É doutor em literatura brasileira pela UFRJ e professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Autor dos livros Magalhães de Azeredo – série essencial (ABL) e Estrangeiros – a representação do anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção (Ibis Libris).

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