Nada melhor do que ler um livro e encontrar uma boa história. Uma história aparentemente simples, mas que nos surpreenda e até nos faça invejar o autor (por que não tivemos essa ideia?). Contudo, o que muitas vezes acontece é que cada autor deseja ser reconhecido como um James Joyce. Cada um quer inventar uma linguagem, um novo modo de narrar, uma trama mirabolante que ninguém tenha explorado antes. Desejam ser os criadores de uma nova escola literária. Isso acontece não só na literatura, mas também no cinema.
Por que um autor não se contenta em usar a linguagem que aprendeu, como a que lê nos livros de outros escritores, consagrados ou não? Por que não contar uma história simples, valorizá-la e explorar os detalhes, mesmo que comuns, mas que cativem os leitores? Acredito que muitos autores que iniciaram um novo estilo talvez nem soubessem o que estavam fazendo; a inovação pode ter surgido quase por acaso ou pela necessidade de expressar a singularidade de suas experiências.
Motel Mustang, de Marcus Vinicius Rodrigues, é um livro sem grandes pretensões. Logo nas primeiras páginas, ficamos sabendo que a narrativa foi inspirada em um fato:
Salvador, 19 de maio de 1989 — Chegando ao conhecimento desta delegacia que na madrugada do dia 19 do mês em curso, uma avalancha de terra soterrou o MOTEL MUSTANG (…), acidente este que vitimou funcionários e clientes, D E T E R M I N O seja instaurado o competente Inquérito Policial para a devida apuração dos fatos. (Trechos da Portaria de abertura do Inquérito Policial)
Desde o início, já sabemos o que aconteceu. A questão principal passa a ser: como o autor irá explorar esse tema? Quais questões ele trará à tona? Isso diminui o valor do livro? Claro que não, pelo contrário, o torna ainda mais interessante. Quem lê o livro já está ciente do evento principal. Nada mais honesto. E a literatura precisa de honestidade. Nenhum leitor gosta de ser enganado por um narrador que tenta ser esperto.
O que encontramos a partir daí são seis histórias, sendo três delas relacionadas diretamente aos clientes, uma aos funcionários e as outras duas a pessoas que viviam nas redondezas do motel.
O Motel Mustang se torna o centro da narrativa, reunindo em torno de si as histórias de pessoas que, de alguma forma, estavam envolvidas com o ocorrido.
Essa não é uma literatura de suspense, onde não sabemos o que acontecerá em seguida, mas uma narrativa que se destaca principalmente em dois aspectos.
Dois aspectos
O primeiro é o ambiente. A história se passa em um período de chuvas intensas, onde a população está à mercê da própria sorte. O cenário é quase apocalíptico. E, nesse contexto, não há apenas vítimas, mas também oportunistas, como os proprietários do motel, que se recusam a fechá-lo, mesmo diante das chuvas diluvianas. E, como sempre, observamos a negligência do poder público.
O segundo aspecto são os personagens de cada capítulo. Desde o jovem inexperiente em questões de sexo — que trabalha para um patrão envolvido em desmanches de carros — e pretende levar a namorada pela primeira vez a um motel, até o militar que encontra a namorada às quintas-feiras para levá-la ao local. E, como reflexo da normalidade de nossos dias, temos também um casal homossexual, que vive sua relação com satisfação e fantasias.
Poderíamos ainda incluir um terceiro ponto: a habilidade do autor em descrições quando o assunto é a relação sexual:
Terêncio se deita a seu lado e começa a alisar seu corpo. Passa a mão pelas costas e depois pela bunda, por cima da toalha, desce para as coxas, enfia a mão e volta pelo meio das pernas até a bunda. Jackson geme. Ainda de bruços, procura com a mão o corpo do outro. Encontra a calça. Passa a mão, aperta, massageia. Encontra o cós e tenta enfiar a mão. Os pelos. Tenta alcançar o pau por dentro da roupa. Terêncio segura sua mão.
Fora desse cenário, a narrativa também retrata outros personagens, como aqueles que moram nas proximidades e que, de alguma forma, lucraram com os escombros do desabamento; ou outros que sofreram perdas; ainda há pessoas que, por causa da tragédia, descobriram segredos familiares que preferiam não saber. Aqui, percebemos a tentativa de abarcar um todo, o que muitas vezes escapa da literatura. Ela é como um cobertor curto: se cobrimos a cabeça, os pés ficam de fora; se cobrimos os pés, a cabeça fica descoberta. Nós, autores, precisamos ter consciência disso.
Ainda assim, o romance tem um saldo bastante positivo, não só por sua boa estrutura, quase como a de um conto, mas por expor a desventura humana. Em episódios como esse, os prejudicados são, quase sempre, as pessoas simples.
A desforra e o sentimento de vingança, mesmo em meio à tragédia, são concretizados, como no último episódio com Dona Mira e sua filha:
Eu desisti de limpar. Resolvi bagunçar tudo. Quer brincar? Ela ensinou a filha a pegar a vassoura e derrubar as cadeiras.
Em meio ao caos, a literatura nos lembra que, por vezes, ela mesma é a desordem. E trilhar tal caminho não é tarefa para qualquer um, mas para bons escritores.