Nenhuma história de família sobrevive sem alguém que coloque uma lupa sobre ela. É preciso que um tio, um neto ou um irmão floreie a narrativa, explore os detalhes — cômicos, trágicos, sobrenaturais — e preencha as lacunas deixadas pela falta de memória. Melhor ainda se há entre eles um contador de causos ou um escritor. A família de Andréa del Fuego teve essa sorte. O avô e dois tios-avós da escritora paulista são os protagonistas de seu primeiro romance, Os Malaquias.
Aposto que foi numa dessas reuniões de família, a mesa farta e muitas histórias contadas ansiosamente, que Andréa ouviu pela primeira vez que os bisavós, Donana e Adolfo, morreram de raio. As três crianças (o avô, Nico, e os tios-avós, Antônio e Júlia) ficaram órfãs no meio de uma tempestade. Nico era o mais velho e ficou trabalhando para o dono da Fazenda Rio Claro. Os outros dois foram mandados para o orfanato das irmãs francesas. A menina foi adotada. O piá, anão, ninguém quis. O tempo passou diferente para os irmãos — um em cada ponta do triângulo. Nico cresceu loiro dos olhos claros. Júlia cresceu no sobrado dos fundos da mãe adotiva. E Antonio não cresceu nada. Já adulto, Nico se apaixonou. Chamou os irmãos para o casamento. Conseguiu levar Antônio, mas Júlia não foi liberada pela mulher que cuidava dela e temia que ela fosse às bodas e não voltasse mais. Júlia fugiu, é claro. Tentou ver o irmão entrar na igreja e sair de mãos dadas com Maria. Mas acabou ficando na rodoviária.
A história, cheia de encontros, desencontros e água não é muito diferente de outras tantas por aí. Mas é única, como todas as boas histórias. O que vale mesmo é a prosa. É a forma de contar. No meio da trama familiar — e Andréa diz ter mantido, inclusive, os nomes originais dos parentes — há os detalhes: a cidade inundada para a construção de uma hidrelétrica, o fantasma da mãe do dono da fazenda, o homem que caiu no bule da café… Certo. Provavelmente o avô de Andréa não caiu no bule de café. Nem o fantasminha de uma velha viveu na barra da calça ou no chapéu do tio-avô anão. Esses são detalhes da cabeça da escritora. São os adornos que dão cor e gosto à história — que continua sendo, mesmo assim, da família. Só que sob uma lente de aumento fantástica.
Muita gente, aliás, diz que Os Malaquias é um romance que segue a linha do realismo fantástico. Eu diria que sim… que há uma (grande) pitada de fantasia aí. Mas talvez não seja o rótulo mais apropriado para definir o livro como um todo. Eu li o texto de minha xará com um “olho” mais poético. Histórias de família me encantam. E sempre me parecem líricas. E, por mais absurdas que possam parecer, sempre soam reais para mim.
Antônio saiu da cozinha, a louça lavada que ele asseava em pé sobre um banco, seguiu até a porteira de onde a água da represa ficava maior sem a moldura da janela. Maria foi para a beira da pia, o pano enferrujado de cafeína, o pó seco esfarelando. Botou água na chaleira, deixou ferver. Trouxe a ebulição e foi derramando uma linha quente. Quando a fumaça subiu veio junto, num fio dos que mantêm um fantoche em pé, um som. Não subiu cheiro, foi um ruído. Deixou mais água cair e achou ouvir Nico, a voz do fundo do coador, diluída e rala. Abaixou a orelha até a borda do bule para ouvir melhor, como concha do mar.
Os Malaquias é um livro para ser lido todo de uma vez. Os capítulos, alguns tão pequenos como Antônio, passam leves. As palavras têm o peso certo, a hora certa para chegar. E as histórias — tristes, alegres, românticas ou fabulosas — são encantadoras. São como as tardes de reunião em família contadas por aquele parente que domina as palavras. E inventa verdades.