Retratos em branco e preto

Não sei muito sobre meus antepassados. Minha memória desgastada vai pouco além dos meus avós, maternos e paternos. Um erro
Adriana Lisboa, autora de “Um beijo de colombina”
01/08/2001

Não sei muito sobre meus antepassados. Minha memória desgastada vai pouco além dos meus avós, maternos e paternos. Um erro. Saber das origens é mergulhar em um caminho de tijolos amarelos (ou de outra cor qualquer) que deve levar a um lugar mais ou menos parecido com o nosso lar. Pode haver monstros sem coração, e cheio de medos. Mas não deixa de ser uma grande descoberta. É o que dizem por aí, pelo menos. Quero acreditar que sim. Que saber mais do que o que se vê nas fotografias amareladas e cheias de dobrinhas que ficam no álbum escrito “Minha Família” deve ser uma boa viagem.

Então, forço um pouco o vazio de minha cabeça. Que ultimamente anda oca de lembranças coloridas. Elas estão um pouco desbotadas e empoeiradas pela falta de uso. Mas ainda estão lá. Escondidas entre as memórias de um dia na escola, ou um doce que comia quando criança. Ou perto de um filme que assisti em um uma noite bem fria, de chuvinha fina. Num sábado, o melhor dos dias.

Meu bisavô, por parte de mãe, era judeu polonês. Júlio Schaia, homem forte. Veio para o Brasil em tempos difíceis. Sozinho. Aqui, encantou-se pela alta e branca, muito branca, Guilhermina Clara. Guria curitibana que vivia na moda. De vestidinho estilo melindrosa, com grandes colares de pérola falsa ladeando o pescoço e o colo. Tão bonita, ela era. Tenho uma foto em um álbum esquecido em uma prateleira de minha casa. Altiva. Bem de acordo com o que esperavam de uma senhorita da sociedade curitibana dos idos de 1920. Pois bem. O jovem Júlio Schaia apaixonou-se. Antes de casar, montou uma fabriqueta de chapéus. Tinha de ter um dinheirinho para sustentar a bela e alva senhorita de sotaque meio alemão, herdado dos pais. O polonês não satisfazia mais minha bisa levando de presente uma penca de bananas. Presente que comia, aliás, com muito gosto, depois de encontrar a dona de seu coraçãozinho.

Casaram-se em cerimônia bonita. Bem tradicional. Vestido longo, buquê, véu, flores e mais flores. E tiveram dois filhos. Guilherme Wolf, meu tio-avô; e Judith Siphra, ou Tita, minha avó. Dois ruivinhos de pele bem clara, feito a mãe. Arteiros. Faziam teatro em casa e cobravam entrada dos vizinhos. Wolf era o comandante. Gostava de dirigir os espetáculos, encenados animadamente pela pequena Tita. Cantavam que era uma beleza. O tio-avô seguiu a carreira. Virou maestro. Compôs óperas. E ainda fez um curso de Química Industrial, que não teve muita serventia. Gosta mesmo do palco. Até hoje, beirando os 80 anos. Tita, não. Casou-se com Eloy Contin Ribeiro. De família portuguesa. Homem que cuidou de continuar os negócios do velho Júlio e até hoje toca a fábrica de bonés, ali na Avenida das Torres. Tiveram quatro filhas: Thais (minha mãe), Gioconda, Norma e Gilda. Nomes imponentes. Musicais.

Tita morreu há quatro anos. Com ela, muitas das histórias que a netarada gostava de ouvir na hora sagrada do café da tarde (lá pelas quatro, quatro e meia). Eloy, continua firme. E as quatro filhas, também. Minha mãe teve três meninas. Eu, a mais velha, Luciana e Mariana. Nomes escolhidos por meu pai, Antonio Bedete de Paula. Filho do próspero gerente do Banco Itaú de São Pedro do Ivaí, no interior do Paraná. Pedro de Paula Sobrinho (que não tinha nenhum tio chamado Pedro de Paula) era respeitado. Meu pai e tios, também. “Lá vêm os filhos do seu Pedro”, diziam. E as portas se abriam. E os cinco pirralhos viravam tudo de pernas para o ar. É que os meninos (quatro: José Aparecido, Antonio, Pedro e João Carlos) e a menina (Odete) eram “terrívis”, como dizia minha avó, Romilda Bedetti de Paula. Mineirinha. Vô Pedro morreu, todos os filhos ainda pequenos. Virou nome de rua lá São Pedro do Ivaí. Dia desses um dos tios tirou foto ao lado da plaquinha, já bem gasta. A vó cuidou de educar os cinco moleques. Saiu-se bem.

Histórias bobinhas, sem nenhuma grande reviravolta. Comuns. Como a de boa parte das pessoas que me lêem. Acho que mesmo que cavouque bem fundo na árvore genealógica (de ambos os lados), não vou encontrar nada de muito excepcional. Nenhum rei, nenhum barão cafeeiro do início do século, nenhum escravocrata. Ou escravo, mesmo. Não sei porque essas árvores mostram que todos vieram de uma família muito bonita e muito rica e que, por alguma piada do destino, perde a fortuna com uma praga terrível na fazenda, ou nas mesas de jogos.

Até quando se inventam histórias, criam famílias muito ricas e coisa assim. Foi mais ou menos o que fez a carioca Adriana Lisboa em seu romance de estréia Os Fios da Memória (Rocco, 221 págs.). Nada de errado, no entanto. Mesmo porque, o lado rico da família fica relegado a segundo plano. São os descendentes bastardos do imponente e extravagante barão Eustáquio Miranda que povoam as páginas da obra primogênita da moça. Boa leitura. Fácil, corrente. Embora às vezes um pouco excessiva. Principalmente quando a narradora, Beatriz Brasil, tem voz mais ativa e conversa com o leitor. Usa sempre a segunda pessoa do plural. Vós. Sabeis, conheceis, podeis. É ela o fio que conduz às memórias de uma família comum que cismou em construir as casas sempre próximas umas das outras, no lugar que ficou conhecido pelas redondezas cariocas como Bairro Brasil.

Bem, Eustáquio Miranda veio direto da corte portuguesa para se assentar na Colônia. Veio com a intenção de plantar café. E ficar rico. Idéia que vingou como a plantação dos grãos na terra boa do Rio de Janeiro de meados do século 19. A prosperidade da fazenda cafeeira alargou os horizontes de Eustáquio. Virou barão. Não foi fácil, porém. Desconfiado que só ele, não dormia com medo de ser roubado. Ficou anos e anos sem pregar o olho. Quando decidiu dormir, hibernou por três meses, onze dias, sete horas e quarenta e nove minutos. E morreu, em um grande incêndio que dizimou sua rica plantação de café.

Mas teve vários filhos, o que garantiu a continuidade de sua história. Todos bastardos, já que deitava com as negras da senzala, para desgosto de sua mulher, Maria Miranda. Catarina, filha de Eustáquio e Joaquina, escrava que veio da África no navio Arsênia, origina efetivamente a história da família da narradora Beatriz. Manoel, seu filho, foi o primeiro a levar o sobrenome Brasil. A história dele não tem muito interesse. O capítulo destinado ao moço é pequeno. Beatriz gosta mesmo de falar sobre Catarina. Mulher forte. Até debaixo de sete palmos de terra. (Fantasticamente, anos e anos depois de sua morte, descobriram que seu corpo estava intacto. Exatamente como no dia em que foi enterrada. Mistério!)

De Catarina, pula-se para Antônia, sua neta. Negra de belos olhos cor de esmeralda. É ela a primeira a escrever os diários das histórias da família. Matéria-prima para Beatriz escrever as memórias familiares. Começou a assentar seus pensamentos na folha branca do caderno no primeiro dia de 1900. Para se distrair um pouco da tensão causada pelo irmão, Domingos, que tinha o sono conturbado e invadido, sempre à meia-noite, por pesadelos premonitórios.

E daí, o fio vai se desenrolando. E se cruzando com outros fios. Às vezes finos, que arrebentam fácil. Muitos amores infrutíferos, desgostos e alegrias. Como na história comum de qualquer pessoa comum. Nada de mais. Mas bonitinho, como as histórias que se escuta na mesa do café, nas reuniões de família na tarde de um domingo preguiçoso.

Casadinhos — Depois da viagem pelas memórias de uma família inteira, Adriana decidiu fazer novo livro calcado nas memórias. Mas é mais “introspectivo”, digamos. Conta poucas, mas profundas, histórias. De duas irmãs. Unidas e separadas por uma mesma lembrança. De uma tarde, de uma menina de seios pequenos, de sementes de ciprestes, de assuntos proibidos. Sinfonia em Branco (Rocco, 222 págs.) é um livro melhor estruturado do que Os Fios da Memória. As personagens têm mais profundidade. Têm almas. Que ficam dançando a tal sinfonia pelas páginas brancas. Vão e voltam, sem muita lógica. Sem uma ordem cronológica. Pensamentos soltos que se embaralham. Sem linearidade. Sem pressa. Repetidos. Muito repetidos. Batem como um martelo no fundo da cabeça. Enxaqueca de idéias.

A história é simples e a trama pode ser desvendada já nas primeiras páginas do livro. Mas isso não importa muito. Adriana se prende a detalhes. Muitos detalhes. Preciosismo: a autora chega a oferecer ao leitor uma bela receita de biscoitos casadinhos — sabe aquela bolachinha amanteigada recheada de goiabada? É que faz parte da história de Maria Inês e Clarice, as irmãs unidas e separadas pela mesma lembrança. É uma receita de família, aprendida quando cada uma delas foi para o Rio de Janeiro, morar com a tia-avó Berenice. Simpática e bonachona personagem de segundo escalão.

Clarice é a mais velha. Toda certinha, sempre falando com voz baixa, subserviente. Casa-se porque sim. Talvez por medo de se tornar uma solteirona. Isso depois de passar uma temporada no Rio de Janeiro, com a tia-avó. Uma beleza. Fugida de lembranças que a atormentam toda a vida. Mas sofre uma reviravolta, no meio do caminho. Abandona o marido e cai na vida. Vira dependente de cocaína. Tenta se matar. É internada em uma clínica de desintoxicação. E depois, mais frágil do que antes, volta para a casa. Na fazenda dos pais. Ainda assombrada pelos fantasmas que a acompanham. Para sempre.

Maria Inês, a mais nova. Rebelde. Vai para a casa da tia-avó, também. Mesmo com um namoradinho “engatilhado” na cidadezinha em que nasceu. Na cidade grande, conhece Tomás. Pintor, moço mais experiente. Viram amantes. Mas volta à fazenda para se casar com o tal namoradinho. Um moço de boa família, com dinheiro. Apesar da estabilidade financeira, não é feliz. As mesmas lembranças que atormentam Clarice, a visitam todos os dias. Por isso tem de voltar. E volta.

Uma sinopse da obra poderia ser: passeio pela lembrança de duas irmãs, separadas por um acontecimento que marcou a infância familiar. Abrangente demais. Mas é isso, mesmo. No meio vem o recheio, é claro. Como a goiaba dos casadinhos. Os detalhes. O açúcar sobre o biscoito feito de manteiga.

Andrea Ribeiro

É jornalista.

Rascunho