Retrato ainda atual

Em BUtterfiel 8, John O’Hara pegou os verdadeiros Estados Unidos e, sem pudor, escancarou o que era escondido por cortinas e iates
Elizabeth Taylor interpretou Gloria Wandrous em Disque BUtterfield 8.
01/05/2005

Quem acompanha o que acontece pelo mundo acha estranho o comportamento dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo em que o governo, que representa uma direita tacanha que defende a pena de morte e condena o aborto (afinal, o que é homicídio, na visão deles?), defende a abstinência total do sexo contra a gravidez adolescente e as doenças venéreas e prega outras tantas bandeiras supostamente morais, tem uma das mais florescentes indústrias do sexo, das drogas e das armas do mundo. Só a indústria pornô gera entre 4 e 10 bilhões de dólares por ano. As drogas, cerca de 60 bilhões. E as armas, 2 bilhões. Armas domésticas, digo.

Mas isso não é de hoje. Já logo depois da Primeira Guerra, os Estados Unidos entraram na primeira das suas grandes hipocrisias do século 20. A Lei Seca, que até pode ter tido as suas boas intenções, produziu tudo o que não queria. E quando acabou, depois de 13 anos em vigor, tudo o que antes dela era secreto e feito entre quatro paredes, agora era público. E entre 1929 e o New Deal de Franklin Roosevelt, em 1935, os Estados Unidos viveram a grande ressaca do crash da Bolsa de Nova York.

A semelhança entre os dois tempos é que a América de então, a América cotidiana, a vivida pelos seus habitantes, já mostrava a ausência de virtudes que demonstra ter hoje, principalmente no que diz respeito às questões morais. Assim como hoje, prezava-se um comportamento exemplar de seus cidadãos, queria-se que seus homens fossem líderes, pais de família dignos e provedores do lar; e mulheres, mães de família educadas, simpáticas e prendadas, perfeitas educadoras de seus filhos. Era o que se esperava. Mas não foi assim, e, devido ao caráter cíclico da história, talvez não o seja hoje.

Por isso, ler BUtterfield 8, de John O’Hara, é viajar no tempo para ver que quase nada mudou em 70 anos, e eventualmente o que mudou foi para pior. O livro foi um grande sucesso à época de seu lançamento, provavelmente por mostrar mais do que as pessoas conheciam, mas que supunham existir atrás de portas estranhas, vielas escuras com grande movimentação e outros ambientes suspeitos. O’Hara pegou os verdadeiros Estados Unidos e, sem pudor, escancarou o que era escondido por cortinas e iates.

A história do livro parte de um fato: em julho de 1931, o corpo de uma jovem foi encontrado na praia de Long Island, perto de Nova York. A polícia não conseguiu descobrir os culpados pela morte da garota, mas conseguiu saber que, além de bonita, ela gostava muito de sexo e de álcool. A partir desse fato, O’Hara cria a identidade imaginária de Gloria Wandrous (em sonoridade fica parecido com wondrous, o que em português daria algo como Glória Esplendorosa, ou Maravilhosa), uma moça ao redor dos 20 anos que vive em uma Nova York de muito desespero financeiro, muitas fachadas sociais a manter e poucas alternativas para se ter uma vida melhor.

No livro, Gloria acorda em um quarto para ela desconhecido. Não se lembra como chegou ali, com quem veio e o que fez exatamente, pois estava bêbada como um gambá. Ela tem apenas a sensação de que transou com alguém, pois está nua, seu vestido está rasgado e há 60 dólares em um envelope na mesa da cozinha com o seu nome na frente. É dessa maneira que O’Hara nos mostra quem poderia ter sido a jovem encontrada morta em Long Island. A partir desse ponto, acompanhamos Gloria em seu cotidiano pela grande cidade, e como funciona essa cidade onde a moral praticamente inexiste, a não ser nos sermões dos pastores que são publicados pelos jornais.

Mas O’Hara não é apenas o psicólogo da América entorpecida pela Depressão e ressaqueada da Lei Seca. Ele é também o sociólogo. No texto de O’Hara percebe-se claramente que, mesmo com o fim da escravidão, as classes sociais eram (e acredito que ainda o sejam) fundamentais para determinar qual seria o futuro das pessoas. E quando ele diz “classe social” não se fala apenas da essência, mas também da aparência. A classe social das pessoas transparece no seu jeito de vestir e de falar, de se portar à mesa, de comer e beber, do que comer e beber e outros pequenos detalhes externos que marcam a descendência do indivíduo.

Assim, da cama para o copo, de um corpo para outro, vemos Gloria despir a América que se faz de vestal, mas no fundo é uma prostituta de dois vinténs. Apenas para ficarmos no campo de práticas sexuais heterodoxas, digamos que pedofilia, estupro, promiscuidade e infidelidade são algo como café com leite, ou melhor, ovos com bacon no café da manhã americano. E claro, como bem preza a uma sociedade capitalista onde o dinheiro é o valor supremo, o importante é ter algum no bolso, não importa a origem ou a que custo ele apareceu.

O’Hara achou um assassino para a desconhecida de Long Island em seu livro. Se você viu Disque BUtterfield 8 no cinema ou no vídeo, com Elizabeth Taylor no papel de Gloria — e vencedora de seu primeiro Oscar por sua atuação — sabe quem a matou. Mas se você não sabe, ou não se lembra, melhor. Assim, terá a chance de rever uma sociedade que, distante 70 anos de nós, parece ainda muito atual. E talvez, com o perdão da pieguice, descobrirá que Gloria não teve um assassino único, mas muitos.

O AUTOR – John O’Hara nasceu em Pottsville, Pensilvânia, em 31 de janeiro de 1905, o mais velho de oito irmãos. Após a morte de seu pai, em 1925, sua família mergulhou na pobreza. O’Hara começou então a trabalhar como foca do Pottsville Journal, até que a falta de pontualidade crônica lhe causou a demissão. Em 1927, embarcou em um transatlântico para a Europa, como garçom. Ficou por lá durante alguns meses, atuando como balconista, administrador de parque de diversões e leitor de medidores de gás. No ano seguinte, voltou aos Estados Unidos, onde começou a atuar como repórter para vários jornais e revistas — entre eles o Herald Tribune, o Morning Telegraph e a Time. Sua primeira matéria no The New Yorker foi publicada em 1928 e ali ele produziu mais de 400 histórias durante 40 anos. Começou a se dedicar à ficção na década de 30, quando escreveu uma série de histórias curtas que se transformaram no romance Appointment in Samarra.

O livro foi um grande sucesso de crítica e público, rendendo a O’Hara um emprego como roteirista nos estúdios Paramount que durou até os anos 50. BUtterfield 8, seu grande clássico, foi lançado paralelamente a The Doctor Son and other stories — sua primeira coletânea de ficção curta. Publicou dezenas de títulos, entre livros de contos, novelas e romances. Ganhou, em 1955, o National Book Award por Tem north Frederick. Escreveu até o final dos anos 60, parando apenas quando já estava com a saúde muito debilitada. John O’Hara morreu em 11 de abril de 1970, deixando inéditos cerca de 50 contos e um romance.

BUtterfield 8
John O’Hara
Trad.: Hélio Pólvora
José Olympio
304 págs.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho