Retorno do assombro na cidade

A poesia de Roberto Piva é feita de outros poemas, de outros poetas, da leitura, do cânone literário, mas sobretudo daqueles que integram a geração maldita
Ilustração: Roberto Piva por Fabio Miraglia
01/09/2023

“Para ser poeta é preciso ser como os coribantes, que quando recebiam os deuses sacudiam a cabeça para frente e para trás.” É o que ouvimos na voz de Roberto Piva nos primeiros minutos do documentário[1] de Valesca Dios sobre a vida e a obra do poeta.

Coribantes são divindades referenciadas em textos da Grécia antiga, cultuadas em rituais cujos iniciados dançavam freneticamente em estado alterado da consciência. É por meio do movimento ritmado do corpo que se chegava ao transe, ao necessário desligamento da vida ordinária para acessar e receber os deuses. E para Roberto Piva, poesia é a subversão do corpo, ou seja, ela ultrapassa os momentos da escrita ou mesmo da leitura de um poema. Sua busca sempre esteve ligada a manter uma vida poética, desviando-se de todas as formas possíveis das expectativas da vida burguesa, adjetivo que, em seu grupo, não era entendido da maneira como seus contemporâneos marxistas, porque a palavra “burguesia”, para os poetas e artistas que andavam com Piva, era sinônimo do ordinário da vida comum, porque naquele tipo de subversão que professavam não havia espaço para lados políticos.

Mas o que gostaria de destacar nessa espécie de dica para poetas com a qual Roberto Piva abre a entrevista do documentário de Valesca é a segunda parte da citação: os coribantes balançavam a cabeça para frente e para trás durante a descida dos deuses e isso podemos perceber, metaforicamente, em seus poemas, principalmente os que integram os primeiros livros da década de 1960.

Flanando por São Paulo
Piva fez parte de uma geração de poetas paulistanos que, muito jovens, faziam uma poesia em tudo diversa à daqueles que os antecederam. Era uma reação, nem sempre consciente, ao racionalismo das décadas anteriores, à geração de 1945 e ao concretismo, e, por consequência, uma retomada de alguns aspectos do modernismo dos anos 1920 e das influências das vanguardas europeias. Esses jovens artistas se reuniam para beber e ler poesia estrangeira. Receberam informações sobre o movimento beatnik americano poucos anos depois do julgamento de Uivo, de Allen Ginsberg. Uma tia de Roberto Piva enviava dos Estados Unidos muitos exemplares da literatura americana daquela época, que eles liam e traduziam do inglês. Mas também liam os modernistas brasileiros, os malditos franceses, liam a poesia mística de San Juan de la Cruz, Fernando Pessoa, Garcia Lorca, declamavam Dante ouvindo Charlie Parker ou os ruídos das praças do centro de São Paulo, cidade que já se agigantara, mas mantinha-se conservadora como na época dos barões do café.

Extraordinário leitor
Gonçalo Tavares explica a leitura como um desligamento do mundo, uma espécie de sono, de sonho, um momento em que nos deixamos à mercê da sorte, baixamos a guarda e nos esquecemos de que somos mortais — afinal, ninguém viraria páginas alucinadamente no meio de uma floresta desconhecida. Ler é também escapar do cotidiano, e colocar o corpo, a memória e o afeto à disposição dos mortos. É abrir mão da vida ordinária por alguns instantes. E Piva foi, antes de tudo, um extraordinário leitor, como atestam seus companheiros e amigos, mas também sua própria poesia. Claudio Willer dizia que era comum encontrar Piva flanando pelos bares de São Paulo com um livro debaixo do braço, do qual lia trechos com quem se cruzasse com suas andanças, sem contar os momentos em que, de memória, recitava poemas inteiros, de Lorca a Augusto dos Anjos, nas situações mais inesperadas. O meio mais acessível de escapar da cidade grande e provinciana e da vida ordinária e das expectativas que os outros nutriam a seu respeito era ler, na biblioteca, nos bares, nas praças. Piva manteve-se nesse entrelugar pela vida toda.

Sem contar a plaquete em que publicou uma extensa Ode a Fernando Pessoa, Roberto Piva estreou em 1963, com Paranoia, livro em parceria com o artista Wesley Duke Lee que, além das fotografias que integram a obra, também assinou o projeto gráfico. Nesse livro, especialmente, há uma profusão de vozes, versos inteiros de Mário de Andrade, por exemplo, ressignificados em um contexto de cidade que, a bem dizer, ainda não tinha alcançado, ou ao menos já entendera que jamais chegaria, ao ideal de progresso que afetou tanto os poetas modernos. E também Lautréamont nas escadas de Santa Cecília, Lorca num hospital da Lapa e Octavio Paz no cemitério do Araçá. O mapa da cidade, por onde Piva percorria, não se afastava muito do epicentro de seus interesses, o quarteirão da Biblioteca Mário de Andrade, o curso de italiano do Edifício Itália e as mesas do Paribar. Os mortos que acompanhavam a alucinação do jovem Piva andavam com ele pelas ruas do centro de São Paulo e ocupavam seu corpo, sua memória — os longos versos de Paranoia não deixam dúvida disso.

É noite. E tudo é noite.
É noite nos para-lamas dos carros
É noite nas pedras
É noite nos teus poemas, Mário!

Por vezes, as alusões são menos explícitas ou alteradas, e o encontro de impossibilidades e de imagens repetem o gesto surrealista e antropofágico, em um choque construído com a dicção semelhante à de poetas como Allen Ginsberg. O que se percebe lendo Roberto Piva é principalmente a matéria de que sua poesia é feita: de outros poemas, de outros poetas, da leitura, do cânone literário, mas sobretudo daqueles que integram a geração maldita. Não se trata de um flâneur regular, que observa a cidade distraidamente andando no fluxo oposto a quem se desloca para os afazeres da vida cotidiana. O percurso de Roberto Piva é alucinado pela literatura, que ocupa sua memória e que o afasta da vida urbana, ainda que, paradoxalmente, seja essa mesma urbanidade o mote de seus poemas da primeira fase[2].

Massao Ohno
Não é possível falar da obra de Roberto Piva sem comentar a importância de seu primeiro editor, o Massao Ohno.

Massao Ohno, antes de se dedicar apenas à sua própria editora, prestava serviços a outras casas editoriais e, com as aparas e sobras de insumos dessas encomendas, ele publicava autores estreantes, em uma aposta cujo risco era mínimo, considerando seu processo independente e quase artesanal de edição, bem como o restrito nicho em que esses livros circulavam. Fazendo parte da vida boêmia de São Paulo, Massao estava sempre rodeado de jovens artistas da cidade. E, motivado muito mais pelo papel social que acreditava ter como editor do que pelas oportunidades de negócio, tinha a liberdade de arriscar e publicar autores que não seriam aceitos em outras editoras, sobretudo em uma época em que o moralismo estava cada vez mais colado ao poder institucional.

Segundo Claudio Willer, em depoimento para Massao Ohno: editor (Ateliê, 2019), livro que apresenta a trajetória da pequena casa editorial, “nenhum editor teria aceitado Paranoia de Piva; qualquer outro, naquele momento, veria apenas um destampatório insano nas séries de imagens surrealistas intercaladas por blasfêmias e imprecações; hoje, após meio século e três reedições, reconhecidas como marco de uma virada na poesia brasileira”.

Foi o olhar de Massao Ohno que aproximou Duke Lee a Piva, o que resultou em um dos mais importantes fotolivros brasileiros. A escolha do formato fora do comum — as páginas horizontais para acomodar os longos versos — e as fotografias em alto contraste de Duke Lee fizeram desse livro um exemplo singular do entendimento de que um livro não é apenas aquilo que se materializa nas cadernetas dos poetas. Um livro é materialidade no mundo e disso Massao sabia muito bem. Sua importância como editor, além é claro de ter dado a oportunidade aos poetas que se desviavam das considerações estéticas da época, foi também a de produzir livros singulares, aproximar artistas a escritores, e cuidar artesanalmente de cada um de seus títulos. Pouco importava se as tiragens eram pequenas, os livros chegavam a quem devia chegar. Não nos esqueçamos que estamos falando de uma época em que estava prestes a testemunhar o início das décadas de opressão militar e talvez seu modesto alcance tenha favorecido justamente sua resistência.

Ainda que, pessoalmente, eu considere Paranoia um dos mais importantes livros de Roberto Piva, e também da poesia contemporânea brasileira, o poeta teve uma produção vasta, e seguiu publicando até o fim de sua vida, em 2010.

Passado o tempo da poesia mezzo beatnik, mezzo antropófago dos anos 1960, Piva enveredou-se por um caminho de limite com a prosa, e os livros da virada dos anos 1970 e 1980 tratam sobretudo do amor do efebo, revisitando a poética amorosa e platônica de um amor entre homens, mas com a convulsão de quem sabia que, assim como Bataille, o erotismo era também uma maneira potente de se chegar a um novo estado de consciência. E, finalmente, a última fase, em que Roberto Piva enveredou-se pela busca de uma poesia como palavras de poder, por uma poesia xamânica de invocação de poder da natureza, de cura, operando em um lugar sincrético entre os cultos báquicos e os terreiros de candomblé.

Mais uma vez, essa vasta produção foi reunida em Morda meu coração na esquina: poesia reunida. A obra de Roberto Piva já tinha sido reunida em 2005, pela Globo, nos três volumes de Um estrangeiro na legião. A organização da nova edição, como na versão anterior, também é assinada por Alcir Pécora, crítico e professor de literatura que tem se dedicado à obra do poeta nos últimos anos.

A novidade da nova edição da Companhia das Letras é o acréscimo de alguns poemas póstumos, que foram coligidos e organizados com a ajuda do poeta e tradutor Claudio Willer. Na apresentação da obra, Pécora comenta que a inclusão desses poemas, ainda que estivessem aparentemente concluídos, não foi uma decisão fácil, uma vez que Piva sempre teve uma ideia muito clara de que compunha livros específicos, não poemas esparsos — a solução foi reunir esses poemas inéditos em uma seção chamada Fragmentos, mantendo, portanto, sua potência de projeto, de trabalho em progresso.

De todo modo, a republicação de um poeta que sempre esteve de uma maneira ou de outra às margens, ainda mais por uma editora que tem visibilidade no mercado, é sempre uma notícia a se comemorar. A obra volta a ser pautada, comentada, e esperamos, lida por muito mais pessoas, e talvez circule, direta ou indiretamente, em outros poemas.

E, mais importante, talvez estejamos mesmo no momento exato da história (e de seus retornos e repetições e insistências) em que uma poesia herege como a de Roberto Piva possa ser recebida como uma espécie de expurgo desses últimos anos de ataque à liberdade por meio do pânico moral. Nada mais apavorante para os cidadãos de bem do que o retorno ao sagrado pelo corpo.

Notas
[1] Assombração urbana com Roberto Piva, 2004.

[2] A quem se interessar, indico a leitura da pesquisa de Marcelo Veronese, que desvendou com muita paciência todas as vozes infiltradas nos poemas da década de 1960 de Roberto Piva.

VERONESE, Marcelo Antonio Milaré. A intertextualidade na primeira poesia de Roberto Piva. Dissertação de Mestrado. Unicamp. Campinas, SP : [s.n.], 2009.

Morda meu coração na esquina
Roberto Piva
Org.: Alcir Pécora
Companhia das Letras
504 págs.
Roberto Piva
Nasceu em 1937, em Brotas (SP), e morreu em 2010 na capital paulista. Influenciado pelo movimento beat e pelo surrealismo, é autor de livros como Paranoia (1963), Piazzas (1964) e Abra os olhos & diga Ah! (1975). Em 1976, foi incluído em 26 poetas hoje, organizado por Heloisa Buarque de Hollanda. Sua obra foi coligida em três volumes pela Globo entre os anos 2005 e 2008, com edição de Alcir Pécora: Um estrangeiro na legião, Mala na mão & asas pretas e Estranhos sinais de Saturno.
Vanessa C. Rodrigues

É escritora, pesquisadora de literatura e editora.

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