Reticência artística

Em "Ouvido no café da livraria", Cláudio Neves transfigura a linguagem imediata em poemas fronteiriços da arte do conto
Cláudio Neves, autor de “Ouvido no café da livraria”
31/10/2017

A chamada “poética do conto”, isto é, alguns fundamentos teóricos que orientam o conto moderno, pode ser com proveito aproximada da teoria moderna do poema. Se Edgar Poe, mestre de ambas as artes, ao analisar uma obra de Hawthorne falava da “unidade de efeito” para o conto, não é muito diferente o que diz sobre a composição do poema O corvo, quando refaz seu próprio percurso de autor na busca de um efeito entre tantos possíveis, procedimento que levará ao famoso refrão nevermore. É o “singular efeito único” — no conto e no poema.

Já o russo Tchekhov, como se sabe, foi o grande mestre do subtexto e do final aberto, a que chamava de “reticência artística”, recurso que deu novas possibilidades à arte contística como praticada até então — em Maupassant, por exemplo, a trama de regra conduz a um desfecho conclusivo. Eram fins do século 19, e ao mesmo tempo a estética simbolista se esforçava por substituir, no poema, o descritivismo parnasiano pela sugestão. Se pensarmos nessas intersecções, podemos entender por que, em uma resenha de poesia, viemos até aqui falando da arte de narrar.

São associações a que nos leva o poeta Cláudio Neves, em Ouvido no café da livraria: livro de poemas aparentemente despretensioso, de leitura rápida e até lúdica, mas hábil em reagenciar fragmentação, narratividade e oralidade em forma de verso. A voz lírica se encontra despersonalizada em um “café da livraria”, vigilante e irônica, como um narrador onisciente — ou, mal comparando, como aquelas câmeras de segurança que nos convidam a rir.

No livro, há um aguçado senso do subentendido, que podemos aproximar do conceito narrativo de subtexto. A técnica do conto moderno que atinge o extremo no final aberto é entrevista em certo poema que comporta leitura metaliterária, evocativo de Tchekhov — tanto pelo título de conto famoso, Enfermaria n. 6, quanto pelo debate de verossimilhança na arte; imaginemos um leitor folheando algum volume, na livraria:

Enfermaria n.6
… conversa, que ninguém morrendo lembra,
mesmo que gênio, dizer frase de efeito,
lembra seu time de botão, pensa onde anda
um par de olhos verdes cuja dona
naquele dia em que afinal, aquele em que,
ou, como Tchekhov escreveu na Enfermaria
número 6, uma manada de gazelas,
um desenho de infância, sabe, os russos
são imbatíveis nesse assunto de.

O começo em reticências e o final elíptico na preposição não seriam, em si mesmos, grandes recursos, mas ganham fôlego por todo o ritmo impresso ao mosaico. O poeta está sempre jogando com a percepção supostamente falha da conversa “captada” ao acaso, ouvida aos pedaços. Mas as pequenas colchas de retalhos que Neves vai cosendo com os fragmentos da fala diferem em muito da maneira como se trata a fragmentação sintática na poesia brasileira de hoje — e mesmo na prosa. Os diálogos, o discurso indireto livre e outros recursos da narrativa atingiram a sofisticação do fluxo de consciência e chegaram à fragmentação; mudado em maneirismo, o fragmento sintático é em geral mimético de certa visão filosófica, ora difundida em dogma, para a qual a dispersão é uma espécie de espelho do mundo contemporâneo. O antigo topos do “desconcerto das coisas” é hoje assimilado à própria estrutura da linguagem, que se aceita desconcertada e reflete um mundo onde não há mais lugar para o análogo, nem para qualquer espécie de ordem ou hierarquia. Mundo onde a poesia de Cláudio Neves, por exemplo — inserta na convenção literária, em franco diálogo com a tradição e de temas transcendentes em alguns momentos — não teria muito lugar.

Fragmentação
Em Ouvido no café da livraria, fragmentação sintática não é mimese estilística do caos. Dois aspectos do livro provam isso: um, de natureza estilística — a maneira como o poeta reordena os excertos e aponta para sentidos possíveis, a serem, contudo, construídos pelo leitor. O outro ponto relevante é a própria matéria de fundo dos poemas: entre as conversas de figuras opiniáticas que, aqui e ali, deixam escapar achados poéticos, entrevê-se uma ontologia do Mal — por exemplo, no poema O caso, que termina elíptico: “alguns disseram incesto, mas não creio/ o Mal espreita, o resto é coisa de”; ou em Paranoia, quando alguém na livraria possivemente rememora o sucídio do ator Robin Williams: “veja esse ator do nada suicida:/ que é que explica senão o Inimigo: (…)”.

Já por esse último verso podemos observar como o autor lida com a oralidade. O somatório de “quês”, tão típico da linguagem oral e tão policiado na escrita, marca presença no livro, como, em outros poemas, os chamados índices de ostenção (este, aqui etc.), muitas vezes erguidos a títulos: Aquele, Aquela tarde, Este e aquele. Há também um jogo constante com pronomes pessoais e categorias do tempo. Na leitura, temos o efeito que o linguista Émile Benveniste aponta para a fala: a possibilidade de co-referir e fazer de cada locutor um co-locutor — em Ouvido no café da livraria, cada leitor é também ouvinte e, portanto, co-locutor, criador de referências.

Resulta que oralidade não coincide com a falsa premissa herdada do Modernismo — “escrever como se fala”. O poeta considera a lógica própria do verso, e a oralidade o interessa sobretudo como mobilização da língua pelo falante, expressão de certa relação com o mundo, que amplia com deslocamentos, sobreposições, seleções vocabulares, mas também recursos tradicionais que lhe soam naturais: rimas, métrica, pontuação expressiva etc. Isso prepara o terreno para os sonetos irregulares da segunda parte da obra, intitulada Fora da livraria.

Então o jogo é inverso: se antes o conhecimento da técnica poética estava como um pano de fundo (note-se o decassílabo com acento na sexta do primeiro verso, em Enfermaria n.6), agora é a oralidade que passa a segundo plano. Assim, o trânsito entre linguagem em verso e prosaísmo se estabelece, como também o trânsito entre fala e audição: já no primeiro poema da segunda parte, uma letra de Cartola — “de cada amor tu herdarás só o cinismo” — é mal entendida pelo poeta — “de cada morto herdarás só o cinismo” — fenômeno já estudado por Freud nos primórdios da psicanálise, quando se ocupava dos lapsos. Ao escritor, contudo, interessa menos prosseguir numa autoanálise do que apropriar-se do equívoco para lhe conferir dimensão simbólica: “e, claro, tive de mudar Cartola/ na minha hierarquia, pois que agora/ maior que Porter, Gershwin, Lupicínio,/ afinal, quem deles terá roçado/ a hipótese post-mortem do cinismo/ e mais:/ nela se convertido?”

O lapso, portanto, é símbolo. Importa reafirmar a simetria entre essa poética de abertura de sentido e a sugestão da poesia simbolista, que parece estar na matriz da escrita de Cláudio Neves. Um excerto teórico de Hélio Pólvora sobre Tcheckov, no livro Itinerários do conto, não deixa dúvidas do parentesco: “o conto sugere mais; a narração indireta utiliza símbolos e sequências fílmicos, e a composição se aproxima do poema na medida em que transfigura ao máximo a linguagem imediata” (grifamos).

Em Ouvido no café da livraria, a oralidade está para a sugestão assim como a narratividade está para o subtexto — e o fragmento serve a ambos. É um grande achado de Cláudio Neves unir essas duas pontas — o subtexto do conto e a sugestão do poema —, se pensarmos o quanto, no Brasil, o Simbolismo fora uma estética marginal, e seu contraponto oficioso, o Parnaso, fora o principal alvo da nova poesia modernista, na esteira da qual viriam a fragmentação sintática, a oralidade, a narratividade até. Sugerir e subenteder, simbolizar e entredizer poderiam ter seguido juntos há mais tempo — ou antes continuado a seguir, se nasceram no mesmo ninho de corvo de Edgar Poe.

Ouvido no café da livraria
Cláudio Neves
Filocalia
96 págs.
Cláudio Neves
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1968. É poeta e professor do ensino médio em Fortaleza, onde reside. Ouvido no café da livraria é seu quarto livro de poemas, precedido de Isto a que falta um nome (2011), Os acasos persistentes (2009) e De sombras e vilas (2008).
Wladimir Saldanha

Nasceu em Salvador (BA) em 1977. Publicou, em poesia, Culpe o vento (2014), Lume cardume chama (2014), Cacau inventado (2015), Natal de Herodes (2017) e Arte nova (2021). Organizou e traduziu para o francês a antologia Poesia brasileira em contracorrente (2018), bem como a primeira antologia de poesia belga publicada no Brasil, A tentação das nuvens (2021). Os poemas aqui publicados são do livro inédito Aos que se perdem com as chaves.

Rascunho