Resquícios de Sabino

O escritor mineiro, tema de ensaio escrito por Arnaldo Bloch, caiu no ostracismo e hoje vive isolado, sem o devido reconhecimento.
Fernando Sabino, escritor, jornalista e editor brasileiro
01/12/2000

É bem possível que Zélia, uma Paixão (Record), sucesso editorial do início da década de 90, tenha sido o início de tudo. Fernando Sabino, o autor do livro macabro, vive hoje num escuro ostracismo, escondido de amigos, de inimigos, de conhecidos e da imprensa. Poucos são aqueles que se lembram do escritor de O Encontro Marcado sem frisarem Zélia, Zélia, Zélia, este nome maldito que é capaz de reduzir toda a importante obra de Sabino, composta por mais de 40 livros, entre romances, novelas, contos e crônicas, a pó. Pior que repetir aqui o lugar-comum de sermos um país sem memória seria não salientarmos o fato de sermos um país de memória seletiva, que só reconhece seus homens por suas falhas. Um país assim não merece os grande escritores que teve; merece, isto sim, Paulo Coelho.
Na verdade, convém uma investigação acurada sobre a qualidade ou não deste livro que praticamente tirou Sabino do mapa literário brasileiro. Zélia, uma Paixão, lido hoje, dez anos depois do impeachment de Collor, soa como um folhetim delicioso, uma crônica do poder, como se aqueles que outrora foram deuses descessem à terra para, num monte de feno, fornicar como qualquer mortal.
Fernando Sabino é, antes de mais nada, um sobrevivente daquela que talvez seja a melhor geração de escritores que o País já viu florescer. Ao lado de Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e Rubem Braga formou um time de cronistas sem par na atualidade. Completava o time Helio Pellegrino, psicanalista e contista hoje esquecido como o amigo Sabino. Todos os amigos morreram, todos têm de morrer, e Sabino ficou como testamenteiro da obra de seus companheiros, que aos poucos também se perde. É neste ínterim que entra Zélia, como catalisador de uma tarefa que é das mais gloriosas, porque eleva Sabino a um patamar que o diferencia dos escritorezinhos mortais, sedentos de fama e fardão. Porque Zélia veio consolidar o silêncio necessário não só à permanência da lavra própria como da preservação da memória dos amigos mortos.
O silêncio, em Sabino, se faz palavra.
Para celebrar a vida e a obra de Fernando Sabino a Editora Relume Dumará acaba de lançar Fernando Sabino — Reencontro (156 págs.), de Arnaldo Bloch, dentro da série Perfis do Rio, uma co-edição com a Prefeitura do Rio de Janeiro. O livro é, além de mote para este artigo, uma excelente oportunidade para quem viu a década de 90 passar sem que Sabino fosse citado entre os grandes escritores que o Brasil produziu neste século. Vale a pena atentar para o fato de Reencontro não ser exatamente uma biografia. É, em verdade, um texto despretensioso, o de Bloch, que revisita o autor de O Grande Mentecapto sem preocupações maiores do que a homenagem em vida. O que não significa que o texto seja um panfleto laudatório. Bloch transformou Sabino em uma crônica deliciosa de ressentimento literário.
Isto mesmo: ressentimento literário. Para entender um pouco de Sabino, sua geração e toda a apoteose do caso político-literário Zélia e preciso aceitar Sabino como personagem de si mesmo, como faz, e bem, Bloch. É claro que não há nenhuma originalidade neste artifício, mesmo porque o próprio escritor se fez a partir de Eduardo Marciano, protagonista de O Encontro Marcado e alter-ego assumido do autor, além de personagem chave do romance de formação brasileiro. É sob o prisma de Eduardo Marciano que componho este texto sobre Sabino. Que é um, é o outro.
Eduardo Marciano é um personagem literário derradeiro enquanto representação do idealismo, do romantismo e posterior desilusão que norteiam as gerações literárias brasileiras do século 20. Perene, aparentemente imperecível, Marciano se confunde hoje ainda mais com seu criador, porque ambos sobrevivem à insensibilidade crescente, que pressupõe uma persona de cínica burrice, alheia a ambos, a todos. Nascido em 1956, dentro do primeiro romance de Fernando Sabino, o moleque Eduardo Marciano se faz hoje dono de voz própria, capaz de transbordar as página finais do livro para vir nos contar a epopéia daquele que o fez e se fez a partir dele.
Eduardo Marciano é um ser composto à base de repressões, como bem gostaria de analisar nosso amigo Freud. Reprimido pela figura austera do pai, pela figura perdedora do escritor Toledo, pela figura perdida e incompreendida dos amigos de infância e pelas figuras mau-caráteres da maturidade, o protoescritor encontra na literatura, ou melhor, no sonho da literatura, sua pequena válvula de escape. Ajuda na configuração da literatura como saída única para a vida sem rumo do autorzinho, o trauma sexual da primeira experiência, que o diferencia de seus pares e gera mais uma vez uma repressão que se manifesta de forma orgasmática (ainda que frustrada) na tal da literatura, sempre ela.
E por que sempre ela? Aqui entra um componente importantíssimo: religião. Afinal, é o descontentamento primeiro com o catolicismo (a ser revisto na maturidade) que o faz procurar outra forma de eternidade que a pregada no Evangelho, eternidade esta só possível por meio da literatura.
Eduardo Marciano tem pressa de viver e viver intensamente e por isso faz de tudo para viver a persona que escolheu para si. Só que, num primeiro (e, ironia, derradeira) momento, esta persona não é a do escritor bem-sucedido, e sim a do maudit. O que afasta Sabino, ops!, Eduardo Marciano, do ideal de amor, só concebido se tiver uma finalidade pragmática para este seu canto de vida. Há quem julgue o escritor de grande mercenário, que teria casado com Helena Valadares, filha do então governador de Minas Gerais, por dinheiro e que, posteriormente, teria escrito Zélia (sempre ela!) também por dinheiro. Sobre este último episódio convém dizer que, anonimamente, Sabino doou todos os direitos autorais do livro sobre a ex-ministra para instituições de caridade. É sobre o pragmatismo da vida, sobre a dúvida metafísica e sobre as inúmeras repressões que estão construídas as bases morais nas quais se solidificará o mito. Afinal, para um homem que escolheu assim tão declaradamente seu destino, só lhe resta escolher os fatos que tornem a lenda algo verossímil. O que não foi difícil para o mineiro, cuja tônica da vida foi a dificuldade de escrever, depois a dificuldade de viver de escrever, depois a dificuldade de conviver em literatura e, num momento final, a dificuldade mínima de, obra completa publicada e tudo, ser aceito como escritor. Mas como disse o próprio Sabino, em entrevista, “o homem só se realiza plenamente no momento em que morre. Neste momento ele realizou sua utopia, atingiu a imortalidade”.
Por O Encontro Marcado, Sabino já foi comparado, e muito, com J. D. Salinger, o enigmático autor de O Apanhador no Campo de Centeio. Os dois romances de formação se equiparam ao tentar criar uma identidade comum para a geração a que pertencem. Hoje, a comparação se faz num nível extra-literário, o do recolhimento, do exílio voluntário. Ao que parece, Eduardo Marciano conseguiu seu intento primordial de se tornar um escritor maldito.
Diz a imprensa, há dez anos já, que Fernando Sabino enfrenta um “inferno astral”. A fase enfrentada por Sabino, se assim pode ser definida, se dá menos pelo caso Zélia, explorado à exaustão, do que pela consolidação de uma obra de mais de 40 livros como tão-somente matéria-prima de vestibulares. Afinal, antes ser odiado por uma crítica cada vez menos preparada, desmemoriada e preconceituosa do que ver-se obrigado a ser lido por adolescentes que lhe decoram passagens inteiras para, depois, odiá-lo como se odeia qualquer lição de casa.
Pode-se concluir que o grande erro de Sabino não foi ter nascido Fernando Tavares Sabino, em Belo Horizonte, filho do procurador de partes e representante comercial Domingos Sabino, e de dona Odete Tavares Sabino, em 12 de outubro de 1923. Seu erro maior não foi ter sido escoteiro ou praticado natação na infância, nem foi ter colaborado, menino ainda, para as revistas Carioca e Vamos Ler! do Rio de Janeiro. Tampouco foi ter iniciado o curso de direito, em 1941, nem ter morado dois anos nos Estados Unidos, exercendo as funções de auxiliar do Escritório Comercial do Brasil em Nova York. O erro de Sabino não foi ter-se demitido, em 1957, do cartório que ocupava, presidente do sogro, o ex-governador de Minas Gerais Benedito Valadares. O erro de Sabino sequer foi ter escrito Zélia, uma Paixão.
O grande erro de Fernando Sabino foi, isto sim, ter sobrevivido à sua geração. Tivesse morrido há dez anos, hoje era gênio, mito, lenda, com direito, imagino, a bandeira a meio-pau. Aos 77 anos, cabe-lhe hoje a cela dois por dois do ostracismo, ou, como preferem alguns, mais sensíveis, do exílio voluntário. A redenção de Sabino não está neste artigo; está num futuro necrológio.

Obras:

– Os grilos não cantam mais, contos, Pongetti, 1941
– A marca, novela, José Olympio, 1944
– A cidade vazia, crônicas e histórias de Nova York, O Cruzeiro, 1950
– A vida real, novelas, Editora A Noite, 1952
– Lugares-comuns, dicionário, MEC-Cadernos de Cultura, 1952
– O encontro marcado, romance, Civilização Brasileira, 1956
– O homem nu, contos e crônicas, Editora do Autor, 1960
– A mulher do vizinho, crônicas, Editora do Autor, 1962
– A companheira de viagem, crônicas, Editora do Autor 1965
– A inglesa deslumbrada, crônicas e histórias da Inglaterra e do Brasil, Editora Sabia/1967
– Gente, crônicas e reminiscências, Record, 1975
– Deixa o Alfredo falar!, crônicas e histórias, Record, 1976
– O encontro das águas, crônica irreverente de uma cidade tropical, Editora Record/1977
– O grande mentecapto, romance, Record, 1979
– A falta que ela me faz, contos e crônicas, Record, 1980
– O menino no espelho, romance, Record, 1982
– O gato sou eu, contos e crônicas, Record, 1983
– Macacos me mordam, conto em edição infantil, Record, 1984
– A vitória da infância, crônicas e histórias, Editora Nacional, 1984
– A faca de dois gumes, novelas, Record, 1985
– O pintor que pintou o sete, história infantil, Berlendis & Vertecchia, 1987
– Os melhores contos, seleção, Record, 1987
– As melhores histórias, seleção, Record, 1987
– As melhores crônicas, seleção, Record, 1987
– Martíni seco, novela, Ática, 1987
– O tabuleiro das damas, esboço de autobiografia, Record, 1988
– De cabeça para baixo, relato de viagens, Record, 1989
– A volta por cima, crônicas e histórias curtas, Record, 1990
– Zélia, uma paixão, romance-biografia, Record, 1991
– O bom ladrão, novela, Ática, 1992
– Aqui estamos todos nus, novela, Record, 1993
– Os restos mortais, novela, Ática, 1993
– A nudez da verdade, novela, Ática, 1994
– Com a graça de Deus, leitura fiel do Evangelho, Record, 1995
– O outro gume da faca, novela, Ática, 1996
– Obra reunida – 3 volumes, Nova Aguillar, 1996
– Um corpo de mulher, novela, Ática, 1997
– O homem feito, novela, Ática, 1998
– Amor de Capitu, recriação literária, Ática, 1998
– No fim dá certo, crônicas e histórias, Record, 1998
– A Chave do Enigma, crônicas, Record, 1999
– O Galo Músico, crônicas, Record, 1999

Paulo Polzonoff Jr.
Rascunho