Numa leitura contemporânea, marcada pela angústia da influência, é aceitável a percepção de que a literatura do século 21 não somente rende homenagem aos gigantes da renovação criativa dos 1900, como também que os textos literários não passam disto: uma homenagem. Ou, simplesmente, farsa. Paródia. Um pastiche pós-moderno. Em Pássaro do paraíso, a escritora Joyce Carol Oates faz da mítica cidade de Sparta, no norte dos Estados Unidos, seu ambiente ficcional, à maneira de gigantes como John Cheever e William Faulkner. Eis, então, desvendada a questão da influência. Em tese, tal como dois outros escritores norte-americanos, Oates estabelece um espaço físico para a concepção de sua tragédia familiar. De forma semelhante a outros autores, também, a escritora propõe que a narrativa seja seguida conforme a perspectiva de dois personagens: os jovens Krista e Aaron. Comentar a concepção do romance a partir destas pistas, no entanto, seria, talvez, óbvio demais, além de emprestar à narrativa um fardo que o romance pode não suportar.
Nesse sentido, para além da concepção literária da narrativa, talvez seja interessante olhar para os assuntos que permeiam as quase 500 páginas de Pássaro do paraíso. Crimes, sexo e drogas não são necessariamente questões originais na criação artística ficcional. Aliás, existe mesmo certa predileção em determinados autores ao escolher os referidos assuntos, visto que a ficção tende a se aproximar desses elementos mais obscuros e utilizá-los como matéria-prima. Em Joyce Carol Oates, no entanto, esse artifício não somente concebe certo grau de verossimilhança aos acontecimentos, como também provoca alto nível de instabilidade dramática às cenas. Um mérito, de fato. São passagens que evidenciam tanto a capacidade da autora em se apropriar de temas “mundanos” como indicam um caminho para o tratamento dessas questões sem cair na esparrela de quem se apóia em tais discussões por falta do que dizer. Em linhas gerais, ela não quer fazer um discurso; nesse sentido, esses acontecimentos são elementos que compõem o painel ficcional da autora, da mesma forma que a cidade mítica de Sparta.
Excesso de estilo
Com todos esses pontos, tem-se em mãos um livro que se sustenta não apenas porque a autora logra em se soltar para produzir sentido em uma história extensa, como também pelo fato de que o texto existe em duas perspectivas diferentes. Ainda assim, é notável o quanto dessa prosa, a um só tempo imaginativa e elaborada, contém aspectos que trazem um quê de artificialidade. Isso em nada está relacionado ao ambiente que cerca a narrativa. Tem mais a ver com as elipses que a autora estabelece para os narradores nas duas partes do livro. Na primeira, lê-se, da parte de Krista, a jovem incapaz de ver em seu pai alguém capaz de cometer um crime. E essa impossibilidade reside no fato de ter sido distanciada do amor do pai, a ponto de qualquer questionamento soar ilegítimo, como sugere o trecho a seguir:
Fossem quais fossem os negócios particulares de meu pai em Sparta, eu sabia que era melhor não perguntar sobre eles. Pois embora papai sempre desse a impressão de falar aberta e francamente e num tom de otimismo beligerante, não dava para falar assim com ele também. Eu passara a reconhecer certo estilo de discurso adulto que, sob a aparência de íntimo, era uma forma de evitar a intimidade. Estou te contando tudo o que você precisa saber! O que eu não te disser, você não precisa ficar sabendo.
Ora, temos ali uma narradora e protagonista que ao mesmo tempo em que exala ingenuidade, possui uma visão absolutamente sofisticada do que acontece ao seu redor. Em outras palavras, é como se ela fosse capaz de se distanciar para observar, com um olhar quase etnográfico, uma experiência da qual ela mesma é evidência viva. E a intenção da autora é verificável até mesmo nos sinais gráficos existentes no próprio texto, a saber: o trecho em itálico é um grifo original do livro. Nesse ponto, a verossimilhança dos aspectos mundanos dá lugar a um artificialismo da construção literária. Que fique claro que se trata da demonstração efetiva de recursos de estilo, mas acaba por não convencer, e a história se torna demasiadamente elaborada.
Em outra passagem, é mesmo a capacidade estilística da autora que torna o texto calculadamente sujo e, por conseguinte, falso. Isso se dá quando Krista mais uma vez enfatiza sua predileção pelo pai, não obstante o fato de ela tomar partido dele desde o começo. E, de repente, numa repetição aparentemente ingênua, a narração esbanja retórica: “Papai, não podíamos perguntar. Não Krista, não Ben. Não a nossa mãe. Não da sra. Kruller cuja foto estava no jornal. Não do homicídio”. O estratagema da repetição, aqui, auxilia a perpetuar um estado de negação fundamental para que possamos perceber o caráter dessa personagem. Em contrapartida, é dessa mesma personagem que aprendemos o que vem a seguir: “Não poderia perguntar-lhe sobre Deus; Deus existe, e o que Deus tem a ver com a gente? Eram assuntos tabus, embora a palavra tabu não existisse em nosso vocabulário e, se passasse a ser conhecida em Sparta, através de propagandas e da cultura popular, teria sido em referência ao perfume Taboo”. Narradora e protagonista, Krista tergiversa entre o comportamento limítrofe e a elucubração intelectualizada de quem percebe o mundo a seu redor.
Como um decote
Na segunda parte do livro, é a hora e vez de Aaron. Em certa medida, ele se assemelha à figura de Krista, o que leva à primeira questão: qual é a proposta da autora em conceber duas versões que se assemelham? Sua participação no romance é sensivelmente menos intensa do que a de Krista; todavia, sua história chama a atenção pelo instinto permanente de sobrevivência, evidenciado na sua forma de lidar com as pessoas ao seu redor: “Tinha uma mulher que via com freqüência, uma divorciada de cerca de vinte e cinco anos com filhos pequenos. Via outras mulheres. Não via muitas garotas. Fazia sexo com essas mulheres, às vezes. Não passava a noite com elas, em geral. Não se sentia confortável com o excesso de proximidade”. É este homem visivelmente inadequado que atrai Krista.
E é quando eles se encontram que a verve da prosa da autora salta aos olhos do leitor, conquistando território pelos estímulos e pelas imagens poderosamente concebidas. Em geral, poucos escritores investem na prosa erótica, sob pena de ficarem marcados pelo excesso ou pela vulgaridade. A narrativa de Carol Oates não entende o sexo como tabu. Antes, o percebe como passaporte para a atração (do leitor). Trata-se de um grande momento do livro, exatamente pelo que deixa revelar, como um decote: “Vi a fome também naqueles olhos: o macho sexualmente agressivo, sem a total certeza de seu poder sobre mim, sobre a pessoa que me tornara. Me perguntei se ele estava lembrando: a antiga ligação entre nós”. Mais uma vez, agora na terceira parte do livro, Oates caminha calculadamente. Só que agora o texto propõe uma narrativa que oscila entre os instintos mais primitivos e a mensagem pretensamente cifrada. Ocorre que a essa altura o leitor já conhece o vínculo entre os personagens. Assim, é lícito perguntar: será que as cenas que serviriam como acessório não estão funcionando como principal esteio da narrativa? A pergunta soa despropositada quando alcançamos o final do livro, exatamente porque, escritora talentosa, Joyce Carol Oates produz um efeito sem causa. Um romance que tem muito a dizer pela sua qualidade narrativa, mas que, ao final, se constitui pela força do artificialismo.