Resistência ao tempo

As crônicas de José Castello transcendem o descartável abundante nos jornais diários
Castello: habilidade em narrar histórias de múltiplos pontos de vista
01/01/2004

Pegue um jornal diário. Qualquer um, não importa qual. Coloque-o em sua frente. Leia-o e tente fazer um exercício: quantos daqueles textos resistiriam à prova do tempo? Ou, refazendo a pergunta, o quão literatura é o jornal que você tem em mãos? Provavelmente quase nada. Em minha modesta opinião, a maior parte do jornalismo brasileiro moderno serve apenas para um objetivo: embrulhar peixe no dia seguinte. O resto é mais que descartável. Mesmo o texto de grandes escritores, como Carlos Heitor Cony, por exemplo, quando demasiados presos ao dia-a-dia, perdem rapidamente seu vigor.

O que não é o caso destas Melhores crônicas de José Castello, coletânea de seu trabalho como cronista no O Estado de S. Paulo organizada por Leyla Perrone Moisés. Muito melhor que jornalismo, muito melhor que a análise da realidade, e por isso mais real do que a própria, as crônicas de Castello são, arriscaria dizer, atemporais. E, repito-me, acredito que este tipo de texto esclarece o mundo em que vivemos muito melhor que o jornalismo. Opinião, ou melhor, sensação pessoal.

Por que as crônicas de Castello, publicadas em O Estado de S. Paulo, resistirão ao tempo? Em primeiro lugar, há o destacamento pessoal. Castello não se preocupa em dar a sua opinião sobre os fatos do dia. Talvez — e é um grande talvez — a realidade, o cotidiano, pode ser a fonte primeira de inspiração. Mas a partir desta, tudo ganha novos contornos. Castello some, desaparece em seu texto, e dá lugar a suas personagens.

E que personagens! Em O nariz do príncipe perfeito, toda a ilusão se desfaz na frente do espelho (e daí lembramos que a muitos falta o espelho em casa). Bartolomeu Sáurio, protagonista de Meditação sobre o calor das palavras, nos recorda o poder das palavras (e como é ruim quando as pessoas não sabem degustá-las). Ou ainda o padre Bender, que em Volte que eu estarei aqui para ouvi-lo, simplesmente nos recorda o valor do silêncio (e o quanto se fala em demasia hoje em dia). O desfile de personagens é grande, e não pára por aqui.

Outro ponto que torna a crônica de Castello resistente à prova do tempo são os temas por ele abordados. O escritor/jornalista não fica remoendo o quá-quá-quá da política e sua mediocridade, ou da economia e sua mesquinharia. Os assuntos, seus temas, são o gênero humano, a literatura, as emoções e sentimentos das pessoas. Algo muito mais importante que o nhém-nhém-nhém de FHCs, Lulas e que tais.

Talvez seja piegas se emocionar com a história do tio Olavo, 82 anos, de Meu tio e a tartaruga de Galápagos. Mas será piegas apenas para quem tem sonhos de grandeza, de que o ser humano está destinado às páginas de glória dos livros de história. Ledo engano. Nosso destino é ficar sozinho mesmo, abandonado, sem dentes e chorando um tempo perdido. E simpatizando com a solidão da tartaruga.

É importante lembrar que Melhores crônicas tem muito do envolvimento de Castello com a literatura. Nesta coletânea, as palavras têm um peso grande, assim como os livros. Desde os livros pequenos (em tamanho, não em importância) — O menor romance do mundo —,. passando pelos dolorosos e danosos a quem os tem em mãos — Afastem-se: poemas perigosos ou Cefaléia, de O dia em que eu adoeci de um livro — até os que nem em papel chegaram — os de Todas as histórias já foram contadas.

Destaca-se também a habilidade de Castello em narrar suas histórias de múltiplos pontos de vista, nunca um semelhante ao outro. Quando escreve em primeira pessoa, não é ele. Quando em terceira, ele também não está influenciando o objeto de seu estudo. O escritor consegue impor um destaque necessário para poder ser apenas um cronista da realidade. Mesmo quando esta realidade é fantástica ou de terror, como acontece em algumas crônicas.

Conhecer bem as letras e saber o ofício do jornalista deve ser a química que permite o nascimento das crônicas de Castello. A mistura parece destinada a perdurar, a vingar e gerar outros frutos, além daqueles já feitos.

As melhores crônicas
José Castello
Global
301 págs.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho