Réquiem para o passado

Resenha do livro "Reminiscências", de Marcelo Nocelli
Marcelo Nocelli, autor de “Reminiscências”
02/05/2014

Em O escritor e sua missão (em esmerada edição de 2011, pela Zahar), Thomas Mann nos confidencia, no Ensaio sobre Tchekhov, que “cultivava um certo menosprezo” pelo gênero conto e sua “ligeireza artística”, incapaz de se nivelar (é o jovem Mann que fala) com “a espera heroica ao longo de anos ou décadas” que o romance exige. O ficcionista alemão, porém, haveria de mudar seu julgamento, atentando-se enfim às “dimensões interiores que tudo o que é breve e sintético adquire graças ao gênio”.

A avaliação inicial de Mann, apesar da revisão posterior, é expressiva, pois nos faz refletir que a preterição do conto pelo romance, observável atualmente no leitor em geral, é um dado histórico (embora de natureza diversa). Um dado passível de mudança desde que o leitor detenha a virtude da reflexão analítica capaz de se libertar de avaliações preconcebidas e equívocas, enfocando pela segunda vez (e com lente mais apurada) as nuances do objeto de sua análise.

Thomas Mann possuía tal virtude, escassa, como tantas outras que a boa leitura demanda, nesses tempos modernos.

Retomando a afirmação do grande escritor alemão, concluímos que as virtudes inerentes ao gênero — ligadas todas à contenção — apenas vicejam sob a luz incandescente do gênio. Escassas, portanto, como os leitores. Como fazer para elevar esse gênero “a uma categoria épica” que supere “em intensidade artística o grandioso, a obra gigantesca”?

Não há como saber se Marcelo Nocelli, em seu livro de contos Reminiscências, se propõe tal desafio. Por certo o termo épico não se coaduna com a obra; por outro lado, esta se beneficia grandemente de todas as vantagens que uma expressão lacônica propicia à prática da narrativa curta.

O livro é composto de 17 narrativas, a mais extensa não ultrapassando dez páginas (numa diagramação bastante agradável, bem como o projeto gráfico impecável do artista plástico Leonardo Mathias). Grande desafio é expressar infortúnios humanos, plasmar seres vivos ao invés de títeres, impondo-se o artista um número exíguo de páginas. Não que Nocelli conceba personagens de dimensões shakespearianas, muito pelo contrário: os tipos que habitam a obra são corriqueiros; mas seus dramas, angústias e anseios palpitam intensos sobre o asfalto impassível da cidade.

O título da obra pode ludibriar o leitor cuja expectativa seja a de estar diante de um representante da linha da autoficção em voga, regada a memórias do autor. Na verdade, para além de simples recordações, Reminiscências conota o entrechoque de desejos de outrora e realizações efetivas, bem como de épocas passadas e presentes, ou a reconstrução de passados lacunares por um membro remanescente de uma família esfacelada.

No primeiro conto, ambiguamente intitulado Remissão, o leitor acompanha o retorno de um filho, após anos de ausência, à cidade natal, por conta do enterro de seu velho e austero pai. A relação conflituosa entre ambos dá o tom do reencontro:

Aproximei-me do corpo (…) e num ato obtuso de superioridade, não o toquei (…) Suas mãos entrelaçadas sobre o peito também não se moveriam.

Em poucas páginas harmonizam-se as sensações oscilantes do filho, suas reminiscências e as impressões algo ácidas da cidade modernizada:

No terreno vizinho, onde naqueles tempos existiu uma pasteurizadora de leite, hoje há uma universidade particular, dessas pasteurizadoras de diplomas.

É a imagem que se impõe ao filho pródigo que, tardando o reencontro fúnebre, vai até a padaria em frente buscar num espresso uma evocação proustiana de uma época tão morta quanto o pai. Busca vã, pois o moderno espresso não reproduz o sabor de um rústico coador.

Aqui, como em todas as peças que compõem a obra, as relações humanas são acres ou ambíguas, em especial as familiares, cuja problemática põe em segundo plano o velho conflito do indivíduo/meio (esboçado em contos como O operário da arte). Aliás, muito além de um competente estudo dessas relações, Remissão sintetiza bem os principais temas da obra, pondo já em relevo a figura quase onipresente em suas partes: o pai.

De fato, a figura paterna sobressai aos demais elementos do livro. É, no entanto, um tema de muitas variações, indo do ressentimento explícito (Remissão, Domingos, O quarto dos fundos) à empatia e identificação (Lembranças, Alvitre, A pura, vida). Mais notável é essa figura suscitar um exercício de resignificação dos signos do passado ao narrador; a título de exemplo, o conto Domingos, que é uma extensa lembrança evocada pela memória involuntária, focaliza a relação da tríade neto-mãe-avô nos dias dominicais na casa deste. O perspectivismo do neto/narrador e da mãe envolve a figura do avô numa neblina espessa, convidando o leitor a preencher as lacunas de seu passado.

Seria possível encontrar uma unidade simbólica entre as variações do tema? O que une o severo dono de casa, o polígamo inveterado, o utilitarista inflexível e o intransigente “pai-patrão”?

Uma hipótese seria o assassínio simbólico do passado (a figura paterna está presente apenas enquanto lembrança em muitos dos contos), ao mesmo tempo em que uma reinterpretação dele, a fim de que a superação dos traumas consolide uma maturação existencial.

As “reminiscências” transcendem esse embate. Suas dimensões se ampliam com a temática da velhice e das transmutações pelas quais passa o meio urbano, a sepultar os cenários (e com eles os momentos) de tanta vida plena (o conto A voz da experiência); a sepultar mesmo os sonhos do eu passado, e por consequência o próprio eu (Amanhã, um outro dia e A volta).

Eis a real dimensão do termo.

Estilo
A escrita de Nocelli é a expressão acabada de sua concepção das relações humanas: seca, sem adornos. É significativo que personagens como o velho ranzinza do conto Planária se expressem através de períodos curtos. Mas a segurança no lidar com a linguagem não está só nessa relação forma/conteúdo. Ela também se traduz no jogo hábil (e algo lúdico) com as palavras:

De repente ela aparecia, fumando na janela (…) me proporcionava admirar os pequenos, porém, rijos, empinados, eretos e arrogantes seios que ficavam na altura do parapeito.

Moderação é a palavra de ordem, abarcando o uso de metáforas e (infelizmente) o recurso mais atraente de Reminiscências: as associações entre elementos díspares como a fresa e o violino em O operário da arte, a velhice e a lesma em Planária, etc.

Tal moderação elide o excesso, tornando efetivo o que é expresso, como no trecho acima que seria apenas outra estória obsessiva de um quarentão por uma ninfeta, não fosse o dado essencial: o personagem perdera a mãe aos três meses, guardando como única lembrança seus belos seios…

Há que se admirar tais nuances narrativas que o artista imprime à obra, ampliando interpretações. Fomento às virtudes da boa leitura. E embora o milagre tchekhoviano, citado por Mann, não esteja em seu campo de visão, Reminiscências, trilhando o caminho da narrativa convencional, comprova a perícia de um autor, iniciante no conto, com seu instrumento de trabalho.

Reminiscências
Marcelo Nocelli
Reformatório
147 págs.
Marcelo Nocelli
Nasceu em 1973, em São Paulo (SP), cidade onde mora. É autor dos romances O espúrio e Corifeu assassino. É cronista da Revista ZN. Em 2008, recebeu o prêmio Lima Barreto – Novos talentos da Literatura.
Clayton de Souza

É escritor, autor do livro Contos Juvenistas.

Rascunho