Os romances Belém do Grão-Pará, do paraense Dalcídio Jurandir, publicado pela primeira vez em 1960, e Revolta, do amazonense Márcio Souza, lançado agora em 2005, são semelhantes apenas na aparência dos detalhes topográficos que servem de palco aos dois enredos. Belém e os seus arredores: esse é o espaço em crise no qual estão inseridos os protagonistas dos dois livros. Apesar de as tramas estarem separadas por quase cem anos, a primeira desenrolando-se em 1922 e a segunda em 1835, o apego aos pormenores históricos, regionais e pitorescos também aproxima as duas narrativas. Mas as semelhanças terminam aí. Principalmente no plano do estilo, o romance de Jurandir — o quarto título pertencente ao Ciclo do Extremo Norte, constituído de dez volumes —, de forte teor psicológico e impressionista, afasta-se do romance de Souza, que, como o subtítulo já indica — Terceiro volume da tetralogia Crônicas do Grão-Pará e Rio Negro —, aproxima-se da crônica de registro social, porém com toques de erotismo.
O protagonista de Belém do Grão-Pará é Alfredo, natural de Marajó e personagem principal de outros romances do autor. Filho do branco Major Alberto e da negra Amélia, Alfredo, quando inicia-se a narrativa, ainda é um menino e está prestes a chegar à decadente Belém para viver com a não menos decadente família Alcântara. Nessa altura já vai longe o requinte da belle époque, financiado pelo esplendor da borracha. Virgílio e Inácia Alcântara não se cansam de relembrar o tempo em que viviam na opulência, à sombra do intendente Antônio Lemos, expulso da cidade uma década antes. O contato de Alfredo com a melancolia e os meandros dessa cidade feita de cheiros, penúria, miscigenação, mitos e sensações saudosas, a passagem da infância para a adolescência, o entra-e-sai de parentes, vizinhos e amigos — entre eles os criados Libânia e Antônio —, esse é o coração do romance de Jurandir.
O protagonista de Revolta é Maurício Vilaça, cujos últimos meses de vida ficamos conhecendo por meio das páginas do diário que manteve do dia 1.º de janeiro de 1835 ao dia 17 de junho do mesmo ano. A cidade de Santa Maria de Belém do Grão-Pará está em guerra. Os miseráveis de diferentes etnias — negros, índios e mamelucos — rebelaram-se, tomaram a capital e assassinaram o presidente da província, Bernardo Lobo de Sousa. Está em curso a Cabanagem, insurreição popular contra a Regência e os que desfrutavam o poder político e econômico local, movimento que duraria até 1840. Porém, aos confrontos armados, Maurício Vilaça prefere os embates sexuais, aqui muito mais numerosos do que aqueles. Os dias do protagonista são ocupados mais pelo corpo-a-corpo com um sem-número de mulheres de todas as idades, cores e camadas sociais, do que pelos dilemas impostos pela convivência quase que apenas casual com os líderes do movimento e suas rixas.
Nos seus melhores momentos, o narrador de Dalcídio Jurandir cativa de diferentes maneiras: ora pelo refinada comicidade, ora pelo derramamento lírico, ora deixando que as personagens falem pela sua boca. Já o narrador de Márcio Souza, ou seja, o próprio protagonista, cativa pela crueza e pela coloquialidade. Estamos diante de enredos completamente distintos, disso não resta dúvida. Mesmo assim é possível notar que, de maneira geral, Belém do Grão-Pará e Revolta deixam a desejar justamente no que têm de semelhante: a obediência às velhas regras do realismo narrativo. Apesar dos sopros de vivacidade, faltou ousadia e atrevimento na estruturação dos dois romances. A sensação que fica é a da diluição da clássica forma do romance burguês como o século 19 o conhecia. Esse desconforto, fortalecido pela constituição antropocêntrica dos dois narradores e das muitas personagens, nasce quando tomamos contato com a preocupação cronológica, o respeito exagerado à causalidade e o modo como se dá o registro histórico e social nas duas obras.
A literatura e a história uniram-se de maneira vigorosa em resposta às violentas transformações sociais, políticas e econômicas que ocorreram na Europa a partir de fins do século 18 e durante todo o século 19. Essa atmosfera de mudança radical, provocada pelo triunfo da revolução burguesa, exigiu que o modo monárquico e feudal de se fazer literatura fosse abandonado em favor de algo novo: as aspirações do povo, o sentimento nacional e a reconstrução do passado. Nessa época a mentira intrínseca à toda obra literária ainda não havia sido desmascarada, logo o romance histórico e o social pareciam realmente dizer a verdade sobre a história e a sociedade. Os cultivadores desses dois gêneros acreditavam nos preceitos iluministas, no progresso tecnológico, na apreensão objetiva da realidade, na consolidação do sentimento nacional e na construção da tradição européia.
Belém do Grão-Pará e Revolta cultivam em demasia o respeito à perspectiva e à onisciência exigido pelo programa poético do romance burguês. Mas todos os preceitos do realismo foram rigorosamente desmontados pela ciência, pela psicologia e pelas poéticas modernas, que passaram a desconfiar das intenções edificantes da linguagem literária. Os romances que compõem a atual onda de literatura histórica e social, por não enfrentarem o problema da crise do sujeito e do discurso linear, dão as costas à verdadeira natureza do gênero romanesco: seu caráter crítico. O que neles há de diversão e enlevo agrada muito, mas também deixa na boca o gosto de algo cozinhado há mais de um século.