Caio Fernando Abreu é de longe o maior autor de sua geração. “Ele nasceu pronto”, disse em entrevista o escritor Sérgio Sant’Anna, contemporâneo seu. Em vida, Caio conseguiu conjugar uma produção incessante de contos, romances, crônicas e peças de teatro com períodos de dificuldades financeiras, algo que não é exatamente incomum nas letras brasileiras. Basta lembrarmos de outra escritora também muito desrespeitada em seus direitos autorais e que teve de atuar em diversas frentes, como foi o caso de Clarice Lispector, talvez a sua maior influência literária.
Caio escreveu três “crônicas” em 1994 que ficaram bastante conhecidas, a Primeira, Segunda e Última carta para além dos muros, publicadas em seqüência no jornal O Estado de S. Paulo, em que ele assumia estar com aids. Como o jornalista Zuenir Ventura destaca em seu livro autobiográfico Minhas histórias dos outros (Planeta), Caio foi bastante corajoso ao assumir a doença publicamente num tempo em que se assistia a um clima de terror e ainda se discutia os riscos de contaminação, algo agravado pelo preconceito com que se via a doença. Menciona ainda sua coragem de enfrentar o tema e de se indispor contra um preconceito que, na verdade, perpassa por toda sua vida, isso porque muitas vezes sua literatura foi erroneamente restrita à risível pecha de “literatura gay” ou ele próprio sendo tratado como “escritor gay” (seja lá o que for isso), quando grande parte de sua obra transcende e sequer toca nessa questão.
Recluso em Porto Alegre, Caio começou a realizar um intenso trabalho de revisão de sua obra, como o seu livro de maior sucesso, o romance Morangos mofados (reeditado pela Companhia das Letras em 1994) e o livro Estranhos estrangeiros, também editado pela Companhia das Letras, mas que ele não chegaria a ver. Além desses, há ainda Inventário do Ir-remediável (Siciliano), livro em que ele retirou três contos e reescreveu todos os outros. Esse livro sempre foi lançado como livro de contos, desde a sua primeira edição, em 1970, pela editora gaúcha Movimento. O título anterior (Inventário do irremediável) foi mudado por ele considerar “algo melancólico e sem saída”. Enfim, o mercado editorial fazia as pazes com o autor, numa espécie de tardia mea-culpa. Antevendo um interesse crescente pela sua obra, ele começou a receber mais e mais convites e, enquanto cuidava de seu pequeno jardim devastado por fungos, se pôs a revisar, num processo que pretendia rever todo o seu percurso literário, mas que ficaria incompleto devido a sua morte. Caio faleceu na casa dos pais no bairro do Menino Deus, próxima do rio Guaíba, para onde ia quase todas as tardes assistir ao pôr-do-sol. Após a sua morte, pouco a pouco seus livros ficariam esgotados, mas o processo de publicar seus escritos continuaria, como o livro de crônicas Pequenas epifanias (editora Sulina), organizado pelo amigo Gil Veloso, colaborador que acompanhou a trajetória do amigo escritor; assim como, edições paper-back lançadas pela L&PM e que circulam em bancas de jornais.
Agora, a editora Agir (selo da Ediouro) inicia a reedição de toda sua obra começando com Caio 3D – O essencial da década de 1970, projeto que a dividirá por três décadas, daí o título. A idéia é lançar ainda este ano O essencial da década de 1980 (com Os dragões não conhecem o paraíso e dispersos), assim como, O essencial da década de 1990 com Estranhos estrangeiros e dispersos. Até 2006, a editora deve editar os livros Onde andará Dulce Veiga?, Pequenas epifanias, Limite branco e Triângulo das águas.
Neste primeiro volume consta o romance Inventário do ir-remediável, contos da década de 1970, como Antípodas, Por uma tarde de junho, London, London on ájax, brush and rubish, O príncipe sapo e outros (boa parte retirados de Estranhos estrangeiros), além de três poemas (Oriente, Press to open e Alento), “encontrados” no jornal Correio do Povo e Suplemento Literário de Minas Gerais e ainda não publicados em livro. De inédito mesmo, há os poemas e duas entrevistas concedidas à Cepegê, em outubro de 1970, e ao jornal Zero hora, em dezembro de 1972, além de algumas cartas cedidas pela irmã Cláudia Abreu e seu marido Jorge Cabral (responsáveis pelo espólio do escritor e que não reconhecem Gil Veloso como herdeiro). Boa parte das cartas foi retirada do livro Caio Fernando Abreu — Cartas (Aeroplano), organizado por Ítalo Moriconi. Aliás, este livro está esgotado e merece uma reedição urgente porque através das cartas podemos acompanhar com olhar de voyeur boa parte de sua vida, como suas andanças em subempregos da Europa e, ainda, as agruras de alguém que fez uma renúncia absoluta pela literatura. Mas as cartas que atestam o seu duro ofício também confirmam seu bom humor, sua ligação com o zodíaco, mapas astrais e a crença em relações românticas e duradouras, enfim, um autor divertido, que gostava de chistes e de apelidar os amigos, algo que esmaece a imagem de um Caio sempre soturno e melancólico.
No prefácio de Caio 3D — O essencial da década de 70, Maria Adelaide Amaral (que Caio gostava de chamar de Levinha) lembra: “Nunca durante sua existência, Caio F. foi tão lido, tão visto, tão comentado, tão reverenciado. Se por um lado isso pode soar tristemente irônico, por outro é motivo de celebração. Sua obra afinal permanece e sobrevive a ele atemporal e universal”. De fato, nos últimos anos Caio começa a despontar como autor cada vez mais lido e conhecido. É crescente e intensa nesse momento a produção de estudos, dissertações e teses universitárias a seu respeito.
A idéia da série é do jornalista e editor Paulo Roberto Pires. Esta edição Caio 3D — O essencial da década de 70 e de resto toda a série tem a curadoria de Silvana Salerno e Fernando Nuno, do estúdio Sabiá, que trataram de cotejar os livros com os originais. A idéia pode ser criticada por de certa forma “aprisionar” Caio em três décadas. Em seu caso, temas visões e recortes mudam com o tempo, o que pode dificultar uma visão mais completa da sua obra — por que não publicar os seus livros de contos e romances, em vez de reuni-los por décadas?, fica a questão. De qualquer forma, o livro vem com um belo projeto gráfico (a capa traz três fotografias de Caio em diferentes fases, anunciando as três décadas) e essa série certamente será fundamental para uma maior divulgação da sua obra, sobretudo, às novas gerações que ainda não leram esse escritor atualíssimo e esse é, sem dúvida, o grande mérito dessa série: Recolocar Caio Fernando Abreu nas livrarias, o que a justifica plenamente.