Em 22 de março de 1874, o Diário de Notícias publicava um tríptico poético, intitulado Fantasias do impossível, assinado por um jovem que estreara literariamente havia poucos meses, e cuja importância não seria logo reconhecida. Embora Cesário Verde, então com apenas dezoito anos, estivesse preparado para uma recepção hostil da parte dos conservadores, esperava aplausos dos revolucionários coimbrãos; com esses, no entanto, alinhavam-se alguns dos que mais veementemente o censurariam. Um dos poemas, Esplêndida, seria alvo de uma das “farpas” de Ramalho Ortigão, que nele veria a obra de uma das “lamentáveis vítimas” do “realismo baudelairiano”; igualmente o criticaria Teófilo Braga, a quem parecia inadmissível que um “poeta amante e moderno” descesse “ao lugar dos lacaios” para cortejar uma mulher.
Se a censura de Teófilo atualmente pode parecer estranha, cabe compreendê-la num sentido próximo ao da “farpa” de Ortigão. A novidade trazida por Cesário residia no hábil uso de recursos da ficção realista, o que não foi percebido de imediato. Para dar combate à artificiosa poesia praticada pelos românticos tardios, os novos de Coimbra pretenderam empunhar as armas da sinceridade — e não puderam (ou quiseram) perceber os aspectos irônicos de Esplêndida. Os coevos de Cesário incapazes de distinguir entre “representação estética” e “revelação pessoal”, para usar os termos de Helder Macedo, nele reprovaram ora o homem indigno, ora o vate inverídico. Cabe observar que alguns desses críticos de primeira hora estavam entre os pioneiros que, mais tarde, reconheceriam o talento de Cesário. Fialho de Almeida, de início unido ao coro censório, defenderia o valor do poeta na carta-prefácio que deveria acompanhar a segunda edição d’O livro de Cesário Verde. O texto, inconcluso, só seria publicado em 1917, três décadas após a morte de Cesário.
A publicação destes Poemas reunidos, sob os cuidados de Mario Higa, constitui não apenas uma excelente introdução à obra do autor saudado por Eduardo Lourenço como “grau zero” da Modernidade poética portuguesa, mas também favorece a compreensão da peculiar trajetória por ele percorrida. Se agora, 125 anos após sua morte, Cesário pode ser considerado um poeta canônico, isso ocorre pelo modo como sua poesia foi reavaliada pelos padrões estéticos do século 20 — os mesmos que relegaram a um plano inferior autores como Guerra Junqueiro e Gomes Leal; o texto introdutório assinado por Higa, a um só tempo claro e denso, expõe como ocorreu essa releitura. Enriquecem o volume comentários aos poemas, que incluem desde esclarecimentos sobre o vocabulário até notas de cunho crítico e histórico, e uma iconografia que apresenta ao leitor retratos e fotografias de Cesário e de pessoas envolvidas com sua trajetória — como Silva Pinto, o amigo que pioneiramente editou sua obra —, além de imagens das primeiras edições.
Se a obra de Cesário sempre pode ser proveitosamente lida, há nela, por outro lado, ainda muito a ser investigado — por exemplo, seu lugar como precursor de tendências estéticas novecentistas, ou a natureza do projeto subjacente a O livro de Cesário Verde supostamente obedecido por Silva Pinto. Parece-me, contudo, especialmente instigante a possibilidade de reavaliação da tradicional categorização da poesia de Cesário Verde como “impressionista” (costumeiramente justificada pela integração estética, nela perceptível, do homem ao mundo, ou pela perspectivação de planos a partir de impressões fugazes), que no entanto desconsidera o fundamental aspecto dialético da relação entre a subjetividade poética e o mundo em que se insere — aspecto esse que determina figurações do real em que decisivamente interferem os estados anímicos. Levar em conta esses fatores poderia ensejar leituras que aproximariam o poeta de uma estética expressionista — possibilidade vislumbrada por José Carlos Seabra Pereira e Eduardo Lourenço, mas que carece de aprofundamentos que possam desvelar novos matizes para as cores de Cesário.