A mercadoria como fetiche não é história recente. Em nosso mundo contemporâneo, as pessoas vivem mais em função da transcendência do objeto do que da capacidade de uso que ele proporciona. Muitas vezes, ao apreciarmos as vitrines das butiques ou dos magazines famosos, sentimos desejo de possuir o que está ali em exposição. Pode ser que nem precisemos daquele produto, mas a aura que o envolve acaba por nos convencer a comprá-lo.
Certa vez, uma conhecida começou a pesquisar os preços de várias motocicletas. Perguntei-lhe o motivo que a levava à necessidade de possuir tal meio de transporte. Respondeu-me que era porque tinha de levar a filha ao colégio. Diante do preço dispendioso e do sacrifício que teria de fazer para pagar, sugeri-lhe pegar um táxi diariamente, sairia mais barato e seria mais seguro. Mas ela não aceitou minha intervenção, chegou mesmo a rir. Na verdade, o motivo dela era outro, queria ser apreciada entre seus amigos. Um caso pitoresco, muito comum, do fetiche que a mercadoria nos proporciona.
O livro de Andréa Catrópa, Homens adoram mulheres perfeitas, aborda esse tema. Nada de roupas nem de arrojadas motocicletas como fetiche, aqui o objeto é o próprio ser humano, ou melhor, o corpo humano. Grande parte da história desenvolve-se num hospital, sobretudo entre os funcionários da contabilidade. Dois homens, até certo ponto estranhos, assumem comportamentos extravagantes. O primeiro deles é Eduardo, descendente de japoneses, como muitos em São Paulo, que procura fazer seu trabalho com todo o rigor asiático. Bastante meticuloso, jamais falta, dificilmente entra em férias, e dedica-se intensamente para baixar os custos da empresa, contribuindo para o progresso dela. Mas, como todo ser humano, não é perfeito. Seu comportamento, até certo ponto frio, apresentará pouco a pouco uma vida pessoal conturbada, até a revelação final, uma aberração, que surpreenderá muitos leitores. Outro personagem masculino importante é o chefe de Eduardo, Ricardo, também nissei, que apresenta quase as mesmas características de comportamento. Este, no início do romance, pergunta a Eduardo sobre as atitudes de Ângela, uma enfermeira que trabalha no mesmo hospital e com quem aparenta ter um caso.
O núcleo da trama envolve Eduardo e Marina, sua esposa. O leitor poderá acompanhar o cuidado, estranhamente minucioso, do homem em relação a ela, que se apresenta como uma pessoa doente, incapaz de falar ou de qualquer tipo de movimento. De início, é pungente todo o aparato de dedicação e carinho que oferece à mulher, desejando-a sempre bonita e bem tratada.
Ângela, a enfermeira, ocupa no livro o papel da mulher que traz a questão de uma possível vida dupla que Eduardo poderia levar. A relação dela com o chefe Ricardo chega também a insinuar uma relação a quatro. Muito desconfiada, a mulher procura o apartamento onde mora o marido de Marina, com a desculpa de visitar a esposa acamada. Mas ele teme que Ângela descubra algo misterioso sobre sua esposa. Há mesmo uma cena de insinuação por parte da amiga, quando sobe no elevador em direção ao andar onde mora o colega de trabalho:
Olha para baixo e percebe que já aparecem as primeiras linhas sobre seu colo. Ainda assim, abre um botão da camisa e sobe um pouco a saia, dobrando para dentro o cós de tecido grosso. Antes que o elevador pare, afasta-se do espelho para se ver melhor.
Mas, ao chegar ao apartamento, surpreende-se com a atitude violenta do amigo:
Posso entrar, Ângela perguntou, encostando a mão direita na porta entreaberta. Seu corpo permanecia ainda no corredor iluminado e o contraste com a ausência de luz da sala transformou a silhueta da mulher em uma sombra, que começou a se debater quando foi arrastada para dentro.
Violência contemporânea
Outra possibilidade de discussão que o romance apresenta, além da questão do fetiche, é a violência da sociedade atual, muito comum nas literaturas contemporâneas. Apesar de muita sutileza, o romance apresenta uma sociedade masculina, opressora, beligerante, possuidora de poder aterrador.
Personagem enigmática é outra enfermeira também chamada Ângela, que vem cuidar de uma vizinha de Eduardo, moradora do mesmo andar. Ela se desdobra num difícil enigma para o leitor. Haveria duas Ângelas, ou ambas seriam a mesma? Eduardo surpreende-se e se mostra desconfortável diante da presença da jovem.
Ao ler o livro, veio-me à cabeça — como é muito comum nos dias atuais as inúmeras obras de arte politicamente incorretas — de que o romance poderia despencar no abismo racista. Por quê? A resposta estaria no caráter dos dois personagens problemáticos, pois são descendentes de asiáticos. Se eles, no lugar de descendentes de japoneses, fossem negros, qual seria o resultado? Mas, após voltar a várias passagens da narrativa, lembrei-me de que a literatura possui liberdade para discutir qualquer tipo de problema. A estética é uma coisa; a ética, outra. Um personagem de origem europeia ou africana seria diferente de Eduardo ou de Ricardo? Poderia ser em alguns aspectos, mas na essência seu comportamento não seria muito diferente. Portanto, o descendente de japoneses, ou de asiáticos, como protagonista de uma violência extrema, oculta sob o manuseio e cultivo de delicados bonsais ou ainda por trás da manipulação de bonecas de espetáculo não estaria em nada distante da violência contra a mulher exercida em todos os países, sejam eles do oriente ou do ocidente, do norte ou do sul.
Consolidação do machismo
Embora quase não se nomeie os lugares que servem de cenário para a história, uma cidade ora quente, ora fria e plena de garoa é o local onde se desenrola este drama psicológico, com personagens repletos de traumas, que não sabem como lidar com suas vidas.
A possível relação de Ricardo com Ângela, que vai levá-lo a um pedido inusitado, demonstra a consolidação do machismo, porque obriga a mulher a abandonar seu emprego devido ao receio de causar mal-estar entre os colegas de trabalho.
Como se trata de primeiro romance, ao tentar discutir problemas complexos, é natural que a autora, em alguns momentos, não se sinta tão confortável com o objeto de sua narração. Mas ela se sai bem, tocando de leve num assunto que traz muito lodo e apresenta uma profundidade que não se sabe até onde vai.