Relação íntima

A casa de papel apresenta personagens bibliófilos para tratar do amor pelos livros
Carlos María Domínguez, autor de “A casa de papel”
06/07/2015

O universo foi descrito por Jorge Luis Borges, em seu conto A biblioteca de Babel, como uma (possivelmente) infinita biblioteca. Galerias hexagonais formam uma espécie de labirinto, por onde se perde, se acha e, provavelmente, não se chega muito longe. Invariavelmente, o leitor está preso entre folhas de papel e letras, significados e descobertas. Para leitores, os livros são o meio de construção de sentido do mundo.

Esse grande universo descrito por Borges é também um espaço com uma quantidade imensa de livros. “A cada um dos muros de cada hexágono correspondem cinco prateleiras; cada prateleira contém trinta e dois livros de formato uniforme; cada livro tem quatrocentas e dez páginas; cada página, quarenta linhas; cada linha, umas oitenta letras de cor negra.” Agora é só multiplicar isso pelo número “indefinido, provavelmente infinito” de galerias.

O conto, além de trabalhar metaforicamente os sentimentos do leitor diante da literatura, mostra um dos outros vícios entre os leitores: o acúmulo de livros. A bibliofilia é um hábito entre alguns leitores. O brasileiro José Mindlin chegou a acumular cerca de 40 mil volumes em sua biblioteca.

Em seu pequeno livro A casa de papel, Carlos María Domínguez explora personagens que não são apenas leitores vorazes — são também grandes bibliófilos.

História em camadas
Uma das características que chamam atenção é a maneira com que o autor apresenta os personagens (e o enredo): eles vão aparecendo aos poucos, enquanto camadas do enredo são exploradas sutilmente.

Logo no primeiro parágrafo, é impossível não lembrar da história contada por Jacques Bonnet em seu Fantasmas na biblioteca — A arte de viver entre livros. Charles Valentin Alkan, um compositor francês, foi encontrado morto em sua casa em 1888. O motivo? Foi soterrado pelos seus livros enquanto procurava um volume específico.

Assim como Alkan, a primeira personagem apresentada por Domínguez morre em decorrência de um livro. “Na primavera de 1998, Bluma Lennon comprou em uma livraria do Soho um velho exemplar dos Poemas de Emily Dickinson e ao chegar no segundo poema, na esquina seguinte, foi atropelada por um automóvel.” Bluma não chega viva nem ao final do primeiro parágrafo do livro.

A prosa de Domínguez começa quieta e discreta, com poucas dicas de como irá se desenrolar. O título já entrega uma casa de papel (ainda que as imagens possíveis sejam muitas). Ainda assim, sua narrativa se desenrola como folhas virando, sem que o leitor saiba muito sobre o que poderá vir até que de fato isso chegue.

Depois da menção de alguns nomes de personagens e até de autores, somos finalmente apresentados ao narrador em primeira pessoa: sem nome, é um colega e amante de Bluma, que assumirá algumas de suas funções na universidade (ambos são professores). Este narrador é, também, um leitor e acumulador de livros, ainda que não um grande bibliógrafo assumido.

O desenvolvimento do livro parte de uma correspondência endereçada para Bluma que chega ao narrador com um objeto curioso e perturbador — um exemplar de A linha de sombra, de Joseph Conrad, coberto e embebido por cimento. Na primeira página encontra uma dedicatória escrita pela própria Bluma para alguém chamado Carlos.

A existência desse objeto, meio escultura, meio túmulo de um livro, intriga profundamente o narrador. Por um lado, quer saber a história daquele objeto — como foi de Bluma para Carlos, por que foi reenviado para Bluma e por que está coberto de cimento. Além disso, considerando que o livro jamais seria de Bluma novamente, quer devolver o livro para seu dono.

(Imagino que caiba aqui um comentário sobre uma figura presente na vida dos leitores e colecionadores de livros: a pessoa que os pede emprestados. Segundo Walter Benjamin, em seu ensaio Unpacking my library, o emprestador crônico, que não só não lê os livros que pega emprestado como nunca mais os devolve, é uma grande ameaça para as coleções de livros. No fundo, a vontade que o narrador de A casa de papel tem de devolver o livro para seu dono é quase que uma atitude ética de companheirismos entre os leitores).

Seguindo algumas pistas, o narrador finalmente chega a Buenos Aires para tentar cumprir sua missão. Sua busca o leva ao apartamento/biblioteca de um amigo de Carlos. Delgado também é bibliófilo e conta, aos poucos, a história de Carlos Brauer.

Depois de apresentar alguns personagens e alguns espaços, o autor finalmente chega ao centro da sua narrativa, a história de como um homem perdeu a sanidade e foi consumido pelos livros.

Assim como acontece com os outros personagens, Carlos também era bibliófilo — a estimativa é que sua biblioteca chegasse a 20 mil volumes. E a verdade é que ele se perde quando o fichário no qual fazia o controle dos seus volumes é queimado — e ele fica (metaforicamente) preso no labirinto que ele mesmo construiu ao longo de muitos anos.

Pequenas narrativas
Domínguez constrói sua narrativa aos poucos. Ele cria pequenas narrativas paralelas que aproximam cada vez mais o leitor da história que realmente quer contar. Apesar de ser uma narrativa breve (o livro tem apenas 96 páginas), o autor guarda sua narrativa principal dentro de várias camadas de história, como um pequeno tesouro dentro de um cofre com algumas camadas de segurança.

Parte da sua construção conta também com o narrador em primeira pessoa. O livro apresenta leitores que sofreram pelos livros, morreram com eles nas mãos. São vidas entregues à leitura. Esses personagens, porém, nunca são apresentados diretamente ao leitor. Eles aparecem indiretamente no discurso ou do narrador ou de outros personagens, mas nunca dizem nada eles mesmos. O espanto do narrador também fica evidente em vários momentos. Aos poucos, esses personagens criados absorvem uma aura de mito.

A casa de papel pode transmitir muitos sentimentos para um leitor. Desde empatia e identificação a desespero e agonia. Em seu conto, Domínguez junta tantas fases e tipos de leitura e leitores que o texto se torna uma narrativa emblemática sobre os livros e as relações que mantemos com eles. É inevitável que o leitor não se pergunte e pense sobre sua própria relação com os livros durante a leitura.

Para o narrador, existe uma frase antes incompreensível que passa a fazer sentido depois dos episódios narrados. Quando criança, sua avó costumava dizer que livros são perigosos. “Durante muitos anos acreditei que era ignorante, porém o tempo demonstrou a sensatez de minha avó alemã”, conta. Domínguez fala, sim, em seu texto como livros podem ser perigosos. Mas fala também sobre como podem ser encantadores, acolhedores e edificantes.

A casa de papel

Carlos María Domínguez
Trad.: Joca Reiners Terron
Realejo Livros
96 págs.
Carlos María Domínguez
Nasceu na Argentina, em 1955. Mas vive no Uruguai desde 1989. Jornalista e editor, é autor de um livro de contos, cinco romances e obras de não-ficção. A casa de papel foi publicado em cerca de 20 línguas e vendeu mais de 150 mil exemplares.
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

Rascunho