Refugiado universal

Em "Onze astros", a poesia árabe de Mahmud Darwich conduz o leitor a uma profunda experiência sensorial
Mahmud Darwich, autor de “Onze astros”
02/08/2022

Mais de uma década atrás me voluntariei para dar oficinas de poesia em um campo de refugiados na Cisjordânia. A proposta era ousada porque eu não falava árabe. E os alunos, todas crianças, falavam um inglês bastante quebrado que teria de bastar como língua de comunicação. Nas semanas anteriores à viagem, me preparei buscando os nomes mais representativos da poesia árabe e, especificamente, palestina.

A primeira aula no campo de refugiados foi um caos. O espaço era pequeno demais, as crianças numerosas e o próprio tema da aula parecia incompreensível. Depois de alguns minutos tentando encontrar a palavra em árabe para “poesia”, já que o termo em inglês não fazia sentido, mudei de estratégia e avancei para os poemas. Por tudo que eu tinha pesquisado, Mahmud Darwich deveria ser algo como o poeta nacional da Palestina. E seu poema Carteira de identidade, que eu já conhecera de uma coletânea de poesia árabe, deveria causar um impacto nos alunos.

Falei um pouco da vida dele e da importância de sua poesia. Nenhuma reação. Comecei então a ler a tradução do poema em inglês. Os alunos passaram da excitação extrema do novo professor brasileiro, para o tédio absoluto. Mas eis que uma menina que me olhava com os olhos semicerrados levantou-se da cadeira subitamente durante a leitura do estribilho, olhou para os colegas e gritou em árabe: “Ele está falando de Mahmud Darwich”. A pronúncia, muito diferente da minha, foi como o sol da revelação no rosto de todas as crianças. Do outro lado da primeira fileira, levantou-se um menino muito pequeno e pôs-se a recitar com uma seriedade estranha para uma criança: “سجل أنا عربي”, “Registre aí, eu sou árabe”.

Era o poema em inglês que eu havia selecionado como exercício e, de repente, não era eu quem ensinava, mas quem aprendia com a menor das crianças, que recitava justamente o mesmo poema, no árabe em original, de cor, com uma postura física e uma autoridade que talvez apenas os refugiados do mundo tenham. Ele recitou o poema inteiro, em voz alta, diante do silêncio respeitoso da sala de aula e do meu espanto. Essa foi a primeira vez que ouvi recitado em árabe um poema de Mahmud Darwich, cujo livro mais recente traduzido para o português, Onze astros, comento em seguida.

Os textos de apoio da bela edição da Tabla ajudam a dar o contexto da vida e obra de Darwich. A excelente tradução de Michel Sleiman apresenta ao público brasileiro uma das vozes mais importantes da poesia do século 20. Esse livro em especial faz pensar sobre a capacidade da arte, e da poesia em especial, de transformar uma imagem única, um acontecimento próprio, a história específica de um povo, em algo universal. O gesto principal do livro é refletir sobre o exílio forçado e a invasão de terras a partir da história específica dos palestinos e da vida do autor.

É trabalhando com essa capacidade de com-paixão da poesia, de sofrer com o outro, que Darwich transforma a Nakba, a tragédia palestina da expulsão pelo invasor judeu no século 20, em imagem universal de outras tragédias de expulsão. Forma-se uma triste constelação entre êxodos e diásporas de todos os tempos: a invasão europeia das Américas é contada melancolicamente por um líder indígena e ecoa no diálogo do poeta palestino com um amigo iraquiano desaparecido na invasão americana. A expulsão dos árabes na península ibérica relembra a expulsão dos palestinos que abriu caminho para a fundação do estado de Israel. As memórias de um Mar Morto salgado de lágrimas, retomadas no poema a respeito dos Manuscritos, testemunham sobre uma terra em que povos irmãos podem conviver em paz e em guerra. Um poema de amor entre pessoas de grupos rivais apresenta as duas possibilidades: a união amorosa em símbolo universal do humano ou o bloqueio, a separação, a saudade, o exílio do outro, causado pela guerra.

O título do livro faz lembrar a famosa citação de Walter Benjamin sobre os soldados que voltavam mudos das trincheiras: “Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens”. O frágil corpo humano em uma paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, ou seja, exceto no mundo sob os onze astros mencionados nos livros antigos das religiões abraâmicas — e atualizados pela astronomia usual, nove planetas mais Lua e Sol. Um tempo supra-histórico em que os conflitos se repetem diante dos astros, mas aqui, um tempo humano, sublunar, cheio de paixões. A referência ao sonho de José e sua mudança de posição, de hebreu a egípcio, dá a dimensão dinâmica das tragédias de expropriações. O livro não produz apenas uma acusação legítima diante de uma tragédia recente, mas, a partir dela, uma reflexão trans-histórica sobre a figura do refugiado ou do exilado na própria terra.

Como não poderia deixar de ser, em um livro que se propõe a essa temática, multiplicam-se as imagens de desmembramento. No exílio, coisas insubstituíveis ficam para trás. Ressurge dos tempos imemoriais a expulsão do Paraíso e a figura do refugiado como Adão de dois paraísos que “arma uma tenda por saudade da palmeira original”. Minha terra, como se sabe, tem palmeiras. O corpo se vai e os pés ficam presos à terra. A terra é indistinguível do corpo, por isso, a dor é também física e por isso a perda da amada também é como um exílio.

É uma poesia de muitos sentidos. Se entre nós é apenas no Simbolismo que a poesia supera a visualidade como sentido principal e passa e explora os cheiros, os tatos e sabores, a poesia árabe de Darwich conduz o leitor a uma experiência sensorial profunda, em que os espaços são compostos e sentidos através de índices diversos. Não é uma viagem de passado, que vê tudo por cima, mas de quem respira e ouve e sente a textura e o calor dos diferentes espaços apresentados. As palavras se perfumam, são lisas ou quebradiças, agudas ou mornas. Tudo isso é relembrado, presentificado novamente no exílio, no luto, pela força de reminiscência da poesia.

Nosso chá é verde e quente, bebam-no, nosso pistache é crocante, comam-no, nossas camas são verdes, da madeira do cedro, usem-nas para descansar após tão longo cerco, e durmam sobre as plumas de nossos sonhos.

A diáspora traz uma afasia. O rompimento do exílio impede a continuidade da fala. A poesia tem que gaguejar e assim ela o faz, embora a exuberância e a precisão da técnica de Darwich disfarcem o procedimento. Se é impossível contar diretamente a história traumática, o possível é contá-la por meio de metáforas que se multiplicam, e de outros exemplos históricos. A condição palestina evoca todos os refugiados do mundo para poder ela mesma falar. O trauma que não pode ser contado se torna tarefa prioritária da literatura, arte da palavra. Daí a importância histórica da poesia de Darwich de dizer o impossível de ser dito. “Como escrever na nuvem o testamento de meu povo?”

Se a poesia pode ajudar a delimitar o indizível, cercar o abismo, por outro lado, outro de seus poderes é a invocação. Assim, o ausente se faz presente. A elegia ressuscita, a canção de exílio reabre as portas das casas, ainda que por um momento. A lembrança como resistência ao exílio forçado, a rememoração como religação entre o exilado e a terra. “Meu tempo dentro de mim se distancia de meu lugar às vezes, e meu lugar dentro de mim se distancia de meu tempo.”

Poesia como fio de ligação com a terra para os que se foram. Poesia como fio de ligação para os que ficam. Poesia que insiste em contar a história de massacre na origem de todos os estados nacionais. Poesia como justiça histórica, como memória dos mortos de todas as colônias. Poesia como revelação do mundo moderno assentado sobre bases de cemitérios indígenas:

Mortos dormem nos quartos que vocês vão construir.
Mortos visitam seu passado nos lugares que vocês vão destruir.
Mortos passam em cima das pontes que vocês vão construir.
Mortos iluminam a noite das borboletas, mortos chegam de surpresa para tomar um chá com vocês, vêm calmos como os deixaram seus fuzis.

Onze astros
Mahmud Darwich
Trad.: Michel Sleiman
Tabla
112 págs.
Memória para o esquecimento
Mahmud Darwich
Trad.: Safa Jubran
Tabla
216 págs.
Mahmud Darwich
Nasceu na aldeia de Al-Birwe, na Galileia, Palestina, em 1941. Um dos maiores escritores de língua árabe, é considerado o poeta nacional da Palestina. No Brasil, a Tabla publicou Onze astros, Da presença da ausência e Memória para o esquecimento. Darwich morreu em 2008.
Tomaz Amorim Izabel

Nasceu em Poá (SP). Graduou-se na Unicamp e fez o doutorado em Teoria Literária na USP. É autor do livro de poesia Plástico pluma (Urutau).

Rascunho