O menino acompanha o pai caminhoneiro numa entrega de carga em São Paulo. A noite passada em claro na expectativa ansiosa da aventura cobra seu preço e obriga o moleque a dormir durante toda a primeira parte do longo percurso. Com os “olhos sujos de sono”, é despertado pelo pai que, duplamente feliz por ter o filho ali na boléia e por ter conseguido uma ótima remuneração pelo frete, se põe a planejar o que fará com esse dinheiro extra. Outro garoto viaja de ônibus com a mãe para visitar parentes na cidade grande. Os dois estão aconchegados; após terem erguido o braço que separa as poltronas, nada mais há entre eles, “a não ser a felicidade do menino”. Agora é a garota quem recebe do pai o convite para ir passear na cidade, do outro lado da linha férrea que a separa do local onde moram, e assistir à matinê no cinema. De novo, a ânsia da espera faz com que a semana se arraste interminável até o domingo escolhido para o passeio, e, quando afinal o dia chega, encontra-a “doendo de felicidade”. Situações comezinhas, que se repetem às dúzias a cada instante. Contudo, no coração de seus jovens protagonistas, todas têm status de grande e único acontecimento. E é justamente essa a raridade visitada por João Anzanello Carrascoza em Dias raros, seu mais recente livro.
Doutor em Comunicação e professor da USP, o paulista Carrascoza já conquistou, aos 42 anos, uma posição de destaque na literatura brasileira com seus vários títulos dirigidos ao público infanto-juvenil, segmento importante, complexo e que requer habilidade especial do escritor (embora seja por muitos considerado, injustamente, uma divisão menor da literatura). Visando o leitor adulto, Carrascoza dedicou-se até agora exclusivamente ao conto. Seu quarto lançamento no gênero reúne dez narrativas, muitas delas protagonizadas por crianças — como as dos três exemplos citados na abertura deste texto —, o que pode muito bem refletir uma séria vocação.
Carrascoza é um escritor refinado. Sua prosa esbanja bom gosto e sobriedade, sempre com forte inclinação ao lirismo. E essa elegância é a primeira característica a ficar evidente na nova obra. Da discreta capa de cor creme e letras pretas ao miolo em papel pólen e gramatura privilegiada, o projeto gráfico de Vanderlei Lopes casa muito bem com a delicadeza e a sofisticação do texto.
Narrar o mundo pelos olhos da criança é, paradoxalmente, um desafio adulto. Aquela máxima tão batida e da qual não poupamos nunca a petizada — “quando crescer, você vai compreender, etc.” — ganha um novo significado no plano literário. A destreza do escritor em situações como essas está em deixar que a ótica infantil conduza a história aparente, embora mantendo ocultos e apenas insinuados todos os seus desdobramentos e conseqüências, algo que só um adulto tem condições de saber, e de executar. A famosa metáfora de Hemingway, composta para explicar a noção de subtexto, aplica-se esplendidamente bem ao que se pretende dizer aqui: a visão da criança é apenas a ponta do iceberg, enquanto que em sua parte submersa, onde se encontra o maior volume, mas também — e principalmente — o ardil, a mão adulta é quem dirige o espetáculo. É preciso, em outras palavras, ser adulto para distinguir o que seja uma visão infantil em contraponto àquela amadurecida pelo passar dos anos: à criança é dado compreender que existe apenas uma, a sua própria.
Pode parecer fácil, mas não é. Para que esse exercício não redunde em algo caricato, piegas ou mesmo inverossímil, o escritor precisa, antes de mais nada, abstrair por um momento, desaprender, livrar-se de preconceitos adquiridos ao longo do tempo, sensibilizar-se mais e racionalizar menos, refazendo trajetos muito peculiares da infância. Depois, dar voz a esse ser parcialmente desmontado e reconstruído num estágio anterior da vida, deixando-se guiar por sua inocência — o que qualquer adulto irá mais tarde fatalmente reconhecer. Por último, iluminar o detalhe, o aparentemente insignificante, aquilo que responde por toda a graça da história e que o protagonista via de regra ainda não está preparado para compreender. Carrascoza faz tudo isso com a desenvoltura de quem já treinou muito. Tem hoje tarimba suficiente para se arriscar até o limite máximo aonde pode chegar antes de perder a mão e cair na pieguice. O resultado é a prosa sempre emocionada, que flerta desavergonhadamente com a poesia.
Em Dias raros, percebe-se uma unidade que transcende o fato de as histórias terem um mote comum, e isso se deve em grande parte à linguagem: de sua eficácia depende a coexistência das duas visões — a aparente e a cifrada — na mesma peça ficcional, mas também a costura que abarca as demais histórias, aquelas vividas por adultos. O registro se mantém sempre elevado, embora o livro se acomode no clássico modelo estatístico: três das histórias são medianas em relação ao conjunto, quatro estão acima da média, enquanto pelo menos três delas são excepcionais.
No primeiro grupo, incluem-se Ponteiros, a história de duas famílias que viajam de carro para o veraneio, saem juntas e chegam ao destino em horários diferentes; Rosa do deserto, onde o narrador já idoso sente-se atraído por uma bela e exótica jovem; e Dor futura, narrada pelo pai de família no dia em que se descobre portador de uma doença incurável e fatal. Nelas, a linguagem tem todo o destaque e consegue manter o bom nível do discurso, mesmo que os argumentos sejam um pouco frágeis, notadamente o de Ponteiros.
Pertencentes ao segundo grupo, vêm Cidade-mundo, a já referida história do menino que viaja com a mãe; Balança, a do caminhoneiro e seu filho; Janelas, em que o irmão chega de surpresa para visitar a irmã que mora do outro lado da cidade; e Além dos trilhos. Neste último, também já citado, a expectativa da menina que aguarda ansiosamente pela a visita à cidade é o verdadeiro protagonista da história e tem origem no convite:
“E, antes de ir ao banho, o pai, para esticar a curiosidade dela, emendou, E tem um cinema, a gente podia ir na matinê, o que você acha? A menina emudeceu com a notícia, de tão imensa para ela, o coração cutucando o peito, e disse sim só com a cabeça, que uma palavra ali quebraria o cristal do instante, o convite para ela já se transformava em promessa.”
(“Quebrar o cristal do instante com uma palavra” é por si um exemplo soberbo da poesia que se manifesta em vários instantes.) Tudo converge ao ponto em que o dia finalmente chega e os dois, pai e filha, atravessam os trilhos de trem que apartam da cidade o bairro onde moram. Essas quatro histórias, além de repetir as virtudes de linguagem das do primeiro grupo, apresentam tramas originais e bem urdidas.
No terceiro grupo, onde está contido o melhor da coletânea, encontram-se Chamada, Umbilical, além do conto que dá nome ao livro e encerra o volume. Sobre eles é necessário que se detenha um pouco mais.
Dias raros conta a história de um menino que é obrigado a deixar seu pequeno mundo junto aos pais para passar uma semana de férias na casa da avó, que mora em outra cidade. Primeiro contrariado, à medida que passam os dias ele vai sendo paulatinamente seduzido pela aventura e descobrindo os encantos de uma vida diferente da sua. A transformação pela qual passa o garoto é retratada com limpidez e grande delicadeza, desaguando num desfecho macio que nada mais é do que a síntese da própria coletânea:
“O verão ardia, espalhando a luminosidade tamanha. A tepidez da terra na lembrança. O carro se moveu, vagaroso, e o menino acenou para a avó, Tchau, tchau… Só não entendia por que, na tarde tão ensolarada, aquela garoa em seus olhos.”
Umbilical é um conto de dificílima execução, onde a maestria de Carrascoza é posta à prova e de onde sai vitoriosa. Num único parágrafo, pontuado apenas por vírgulas, alternam-se duas vozes: uma é a da mãe que prepara o modesto jantar para o filho, a outra é a do próprio rapaz, que volta de mais uma peregrinação em busca de emprego. O título não poderia ser mais adequado e contém toda a ampla significação da narrativa.
Por último, o melhor momento, e ele acontece logo na segunda história: Chamada é nada menos que um dos mais belos contos contemporâneos brasileiros, e por ele só já valeria o investimento no livro. A história da menina que é mandada pelo pai ao colégio, deixando em casa a mãe moribunda, é uma peça forte, comovente, que se desenvolve no mesmo ritmo em que avança a intuição da menina em perceber a verdade ao mesmo tempo que tenta refutá-la:
“Encontrou-a sentada na cama, as costas apoiadas em dois travesseiros, os olhos inchados de insônia, nos quais ainda se podia apanhar a noite, como uma moeda no fundo do bolso. E, mesmo sendo filha e conhecendo-a bem, Renata não a achou nem mais nem menos abatida, pareceu-lhe até que gozava de boa saúde e nunca sofrera do mal que a consumia. A menina aproximou-se dela, ouviu-a sussurrar com esforço, Bom dia, querida, e respondeu-lhe na mesma medida, Bom dia, mamãe, que outra coisa não tinham a dizer uma a outra, senão essas óbvias palavras, por trás das quais havia o desejo visceral de que o dia lhes premiasse com outras levezas — a maior já era terem despertado para um novo dia, ainda que para a mulher, às vezes, fosse insuportável abrir os olhos e dar com o sol a arranhar as paredes.”
Carrascoza, que já ganhara um merecido lugar na literatura brasileira, demonstra-nos agora com este Dias raros que ainda poderá surpreender — e muito — nessa trajetória sólida, mas sempre ascendente, e rara, muito rara, para um autor ainda tão jovem.