Reféns de um mundo estéril

"Objeto cintilante", novo romance de André Timm, assombra por retratar uma violência muito próxima de todos nós
André Timm, autor de “Objeto cintilante: história sulfúrea”
01/02/2025

A violência, na literatura brasileira, sempre foi um sintoma das transformações sociais e dos deslocamentos geográficos. Com o processo de industrialização e a crise da experiência da vida rural no século 19, muitos autores retrataram o êxodo do campo para a cidade e como essa movimentação desordenada dos espaços urbanos provocou disputas e conflitos que, invariavelmente, culminaram em crimes e outros atos de desumanidade. O representante maior desse momento é O cortiço, de Aluísio Azevedo. No romance, o trabalho numa pedreira atrai um fluxo de mão de obra que se amarfanha num conjunto de casinhas de um inescrupuloso comerciante português, conformando um microcosmo onde vivem os excluídos, os humildes, todos aqueles que não têm condição de residir nos arredores burgueses. A desigualdade entre a classe dominante, movida pela ganância, e a classe explorada, formada por gente caracterizada por vícios, insídias e infrações, gera um processo de segregação em várias esferas, cujo resultado são incisões de extrema violência, a exemplo do assassinato do personagem Firmo, certamente uma das cenas mais brutais da literatura brasileira. A instituição da cidade como meio para a construção dos atores do enredo decreta não só uma prevalência territorial, mas o embrião de um contexto temático que se avultaria por gerações até os livros de Rubem Fonseca e Sérgio Sant’Anna. O território citadino, com suas fraturas, tornou-se palco majoritário da maldade entre os homens.

Então surgiu a internet e, logo depois, as redes sociais. E, pouco a pouco, autores brasileiros vêm se atentando para uma nova migração da violência: do mundo real para o mundo virtual. Em O tribunal de quinta-feira, Michel Laub mostra as consequências sofridas por um publicitário após trechos ofensivos de conversas com um amigo serem expostos na internet. Drama parecido passa a protagonista do romance Quem falou?, de André Cunha, uma colunista de um portal de notícias que foi filmada durante o ato carnal e teve as cenas íntimas vazadas na rede mundial de computadores. Ambos, porém, não resvalam na contundência corrosiva de Objeto cintilante: história sulfúrea, de André Timm. Em seu terceiro romance, o premiado escritor gaúcho radicado em Santa Catarina traz uma história incômoda, pela assustadora facilidade de ocorrer a qualquer um de nós, da mesma forma que intima o leitor a refletir sobre o impacto da tecnologia em sua vida e relações sociais, explorando os efeitos psicológicos da dependência digital que causa a separação da realidade para um mundo estéril de inescapável sentença.

A primeira parte abre com um homem dominado pela tensão dentro da cabine sufocante de seu carro estacionado num lugar ermo e perigoso. Seu nome é Dante, e horas atrás ele recebeu uma série de mensagens no whatsapp, dizendo que sua filha Antônia havia sido sequestrada. As ameaças se converteram em indicações para uma comunidade pobre, onde é arrebatado por homens com fuzis, cobrando o preço do resgate. O pai impotente pede uma prova de vida da filha, tenta algum diálogo, mas é subjugado por não seguir estritamente as ordens. Então pensa em Alice, a esposa em pânico em casa, nas fotografias da infância de Antônia, os registros conduzidos pela memória afetiva, a pureza da redoma dos primeiros anos, em oposto às imagens recentes, em roupas íntimas, que a filha vinha postando nas redes sociais.

Atmosfera opressiva
Timm estabelece, no que parece a carta de intenção do livro, uma atmosfera opressiva e imprevisível em que um homem vai, numa escalada de terror, ao fundo do abismo para resgatar um nome no escuro. Com uma levada narrativa angustiante e um estilo que realça o frenesi da circunstância e do nervo emocional, o relato opera para um suspense policial contemporâneo que tem os noticiários como fonte imediata de inspiração. No entanto, na parte seguinte, o autor desconstrói essa unidade de sentido, enveredando para uma espécie de estudo sociológico, em que Antônia ganha o protagonismo e a violência é alçada da dimensão terrena para um plano irradiado por um arrebatamento inalcançável para a chance de liberdade. A linha temporal recua e revela que, num passado próximo, a moça já se encontrava na condição de refém, mas então de um estado de alienação causado pelo vício da tecnologia. Tomada por uma necessidade de registrar a si, produzir conteúdo, empilhar postagens e acumular seguidores, sua rotina se pauta em virtualidades e na progressiva perda do contato com o real, diluindo sua existência numa paranoia de abstrações.

Em dado momento, tem uma crise nervosa ao ficar temporariamente sem celular. Torna-se tão impassível e relapsa aos compromissos mundanos que não se dá conta da gravidade do relacionamento abusivo em que está metida, que embarca num vale-tudo indolente ao sentimento alheio para sobreviver e se destacar nessa ilha disfarçada de conectividade. Os efeitos colaterais recaem sobre os pais, que desmoronam como um casal e de maneira individual. Dante e Alice se fragmentam na terceira e última parte, vivenciando ou rememorando episódios resultantes de um acontecimento fulminante, contra o qual, irônica ou tragicamente, buscam refúgio e analgesia no mesmo escapismo tecnológico que o provocou. Não por menos, esse é o segmento do livro em que a estrutura se rende a experimentações estéticas. Excertos, poemas, abas de navegadores, diálogos em formato de mensagens de whatsapp traduzem um relacionamento que precisa de máquinas, assistentes virtuais, imagens e vídeos para estabelecer comunicação, que comprova que, de uma forma ou de outra, todos estamos construindo um arquivo morto ainda em vida.

Foco universal
Em seu romance anterior, Morte sul peste oeste, Timm joga luz sobre um trauma regional, os casos de xenofobia e racismo registrados com a chegada de imigrantes haitianos na Santa Catarina bolsonarista. Agora seu foco é universal, sobre o presente que pisamos e seu futuro irreversível. Tanto que, finalizada a história de seus personagens, o autor publica um bilhete para a filha, um misto de pedido de desculpas e carta de alerta, pelo mundo que estamos deixando para as novas gerações, onde tudo “é mais líquido e mais brilhante e ao mesmo tempo opaco. As coisas se desmancham no ar. Na velocidade de um like”. Treze anos depois de seu nascimento, ele a questiona se o mundo não lhe parece mais violento, ou se sempre foi assim e ele não prestava atenção porque nunca foi atingido.

São perguntas sem respostas, pois ecoam no que seremos, naqueles que, em algum momento à frente, terão o livro como um espelho do seu tempo, o marco de um fenômeno social. Aluísio Azevedo foi tomado pela fervura de pessoas de diversas naturezas e origens numa formação urbana marcada pela desigualdade de classe, por conflitos por espaços, por acessos de violência. Timm se encontra no meio do processo, e por isso seu romance traz um niilismo resignado, um desconsolo de que todos padecemos por igual, em silêncio; de que todos somos reféns de uma violência tão permanente que se faz invisível, que concentra seu território nos limites da palma de uma mão.

Objeto cintilante: história sulfúrea
André Timm
Faria e Silva
176 págs.
André Timm
É natural de Porto Alegre (RS) e vive em Chapecó (SC) desde 2004. É autor de Insônia (2011), Modos inacabados de morrer (2017), romance finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, também publicado na Itália, e Morte sul peste oeste (2020), vencedor do Prêmio Minuano de Literatura 2021. Em 2018, venceu o Prêmio Off Flip, da Festa Literária Internacional de Paraty.
Sérgio Tavares

Nasceu em 1978. É autor de Cavala, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, publicado em Portugal com o título Equação sobre o abismo. Também publicou Queda da própria altura, antologia finalista do Prêmio Brasília de Literatura. Alguns dos seus contos foram traduzidos para o inglês, o italiano, o japonês, o espanhol e o tâmil. Escreve sobre literatura brasileira e hispano-americana para jornais e revistas, além de editar o site A Nova Crítica.

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