Reescritura e pop erudição

Marici Passini não se deixa seduzir pela opção cômoda e ingênua de atualizar o drama shakespeariano
Marici Passini não tem nenhum compromisso com a banalidade, trata-se de uma erudição viva, uma pop-erudição para ser mais exato.
01/09/2004

Meus professores e meu parentes têm muito em comum. Da maioria daqueles não guardo sequer o nome; da corporação destes, cultuo a ausência. Durante meu permanente aprendizado, três professores, entre convencionais e nem tanto, destacaram-se e um quarto começa a gravar sua importância em minh’alma. São eles: seu Alvorino, meu pai, Prado Veppo, Fausto Wolff e Gilda Dieguez.

De meu pai, o começo e ininterrupto incentivo; de Prado Veppo, o sutil empurrãozinho que fui perceber anos mais tarde; Fausto Wolff por simplesmente tudo e Gilda pelo conhecimento, inquietação e o peculiar olhar afiado mirando sempre além das montanhas. De resto é puro resto de traças. O professor é um ator cansado e sem talento que incorporou um único personagem a reproduzir ad nauseam o mesmo texto. Não gostaram? Serei mais claro então: O professor é um rádio. Daqueles com válvulas. O ator cansado convive em invejável harmonia com o aluno fantoche resultando daí, um exemplo apenas, a tutela do Ináfio Lula da Filva. O panorama é desolador para quem imaginava a existência como um palco de surpresas. Mas nem tudo está perdido quando restam as esquinas e numa dessas esquinas da vida, sob luz sutil, irrompe em espetáculo solo Marici Passini e seu Hamlet romance: uma reescritura.

Espanta o fato de uma autora se dedicar a reescritura e espanta ainda mais quando se trata de uma das obras mais famosas de Shakespeare e talvez a mais rica dada a sua fartura de temas: política, moral, violência, tragédia de amor, drama familiar, etc. Sua montagem na íntegra ocuparia seis horas. Infelizmente, isso não afasta a horda de aventureiros que teima em encenar Shakespeare. Aqui no Rio de Janeiro nunca falta um terrorista cultural fustigando o William. Agora é a vez de A tempestade, o culpado é Luiz Arthur Nunes.

Voltemos ao que de fato interessa, o Hamlet de Marici Passini. Isso mesmo, o Hamlet de Marici. Caso você tenha sido maldoso e pensado em plágio ou simplório, vislumbrando paródia, sinto muito, foi um lamentável equívoco.

A reescritura, embora não tenha uma função, exige criatividade, resultando daí uma obra distinta capaz de suportar uma comparação com o texto original, o Hamlet de Shakespeare é o maior exemplo. O primeiro Hamlet é resultado da inventividade de Saxo Grammaticus no século 13 e até encontrar William Shakespeare era do conhecimento de poucos. Foi a reescritura de Shakespeare que derrubou as fronteiras para a moral duvidosa do atormentado e vingativo príncipe. Inúmeras reescrituras, paródias e plágios aconteceram até o século 19 quando então surge a novela Hamlet de Jules Laforgue, obra que mesclava elementos de Saxo Gramaticus e Shakespeare. Tanto a história do mundo quanto a história da literatura são produtos de suas próprias reescrituras, porém o que as distingue é a sutileza, enquanto o massacre de Beslan é a reescritura do grotesco, de vários outros massacres, só que agora contemplando a infância, na literatura, mais uma vez e com talento, somos brindados com uma reescritura primorosa de Hamlet.

Marici Passini não partiu desta ou daquela obra, optou pelo protagonista, o príncipe de moral duvidosa, incapaz de separar o bem do mal,o intelectual paralisado. Não se tratasse de Hamlet, poderíamos afirmar que a obra de Marici dispensa a referência embora as nítidas relações de intertextualidade e hipertextualidade. Insisto que partindo de um hipotexto diferente deste de Shakespeare teríamos uma obra sem dúvida autônoma. Mas tendo como partida o bardo de Stratford, a tarefa se torna praticamente impossível. No entanto, a obra de Marici não demonstra em nenhum momento perda de fôlego, esgotamento do veio, tampouco limitação de abrangência. O plano de imanência da escritora é imenso e pode ser comprovado ao longo da obra. Chama atenção este Hamlet romance: uma reescritura pela intenção da autora em não se deixar seduzir pela opção cômoda e ingênua de atualizar o drama, simplesmente trazendo a tragédia para nossos dias, fazendo de Hamlet, por exemplo, um engenheiro vivendo em Manhattan. Longe disso. A autora deixou Hamlet em seu território de origem e, aproveitando a riqueza do legado de Shakespeare, faz sua reescritura da tragédia ornamentada por sua refinada e ampla visão de mundo. Raros são os escritores que não dissociam o plano artístico do plano ideológico e Marici vem se juntar a Fausto Wolff, Carlos Heitor Cony e mais meia dúzia. Escritores que esquecem o umbigo, sem esquecer que uma das prerrogativas do artista — daquele que faz a diferença — é apontar a injustiça social.

Marici Passini brinda o leitor com uma erudição útil, garimpa o que de melhor existe na cultura pop e insere em situações corriqueiras, acessíveis a qualquer mortal, do mais exigente ao mais conformado.

Ao leitor deste Hamlet romance: uma reescritura é facultado o direito de escolher a forma de mergulhar nas páginas, com ou sem equipamento. Num mergulho livre se limitará às luzes básicas da superfície — o desenvolvimento linear do enredo, porém continuará à sua disposição, em águas mais profundas e turvas, um enredo fragmentado, arranjado caoticamente. A reflexão estética que a leitura enseja também se presta a comprovar a originalidade da criação evitando incluir a autora na longa lista dos imitadores de Joyce.

A autora trata do drama de Hamlet sem dramatizar a história, narrativa afinada, nada além do necessário, apesar das constantes referências à cultura popular, o que não deprecia a obra, visto que os citados não estão comprometidos com a vulgaridade artística. Impressiona a quantidade de referências da cultura pop e impressiona ainda mais por em nenhum momento qualquer delas soar gratuita. Dos anjos de Asas do desejo de Win Wenders passando pelo alienista de Machado de Assis, Hitchcock, Orson Wells chegando à cantora alemã Ute Lemper, sem esquecer Thelonius Monk, Charles Mingus e a deslumbrante natureza carioca. Não meus amigos, Marici Passini não tem nenhum compromisso com a banalidade, trata-se de uma erudição viva, uma pop-erudição para ser mais exato.

Não estou falando de leitura para intervalo de futebol, mas do trato exigido por uma literatura associada à cultura, no país da auto-ajuda, das “perdas e ganhos”, e isso não é pouca coisa não. Estou me referindo a uma obra que deve ser vivida com a serenidade de um amor maduro e o arrebatamento de uma paixão definitiva. Shakespeare fez de Hamlet um “espelho à natureza”. Marici Passini fez de seu Hamlet romance um espelho à literatura.

Durante meu permanente aprendizado, quatro professores, entre convencionais e nem tanto, destacaram-se e um quinto começa a gravar sua importância em minh’alma.

Hamlet romance: uma reescritura
Marici Passini
Garamond
193 págs.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho