O sexo vegetal, de Sérgio Medeiros, esteve entre os dez finalistas da última edição do prêmio Jabuti, na categoria poesia. A um primeiro contato, a capa do livro oferece ao olhar um jogo de cores bastante alusivo em que, por sobre um fundo branco, espalham-se ramos vegetais em uma profusão de folhas de diferentes tamanhos, que sugerem alguma espécie de trepadeira. Seu movimento (o dos ramos) é descendente. A mancha verde resultante é bem mais densa e escura na parte superior da capa e, quando estamos mais próximos da base, restam pouco mais que três ou quatro extremidades de galhos cujas folhas, sendo bem mais escassas, resultam na composição de um “barrado” branco, pouco abaixo de outra mancha, em verde um pouco mais claro que o das folhas, em que se centralizam, em vermelho e letras maiores, o título do livro e, em branco e acima deste, o nome de seu autor.
Se concentrarmos o olhar no exame desse barrado branco, divisaremos a sugestão de um tecido, talvez um véu, talvez um lençol, sob o qual algo parece se ocultar. Novo exame do conjunto levaria à constatação da presença de outra(s) figura(s) compondo a capa. O fato é que quase dois terços (os terços superiores) do espaço que a imagem preenche abrigam um balanço de madeira que faz supor a presença de um ser humano (por baixo das folhas), cujas mãos (ou partes delas, ao menos) passamos a discernir com alguma facilidade, desnudas, segurando-se nas extremidades esquerda e direita do assento em tons ocre. As cordas que prendem o dispositivo (em um galho de árvore?) vão até o extremo superior da capa. À esquerda são paralelas, mas afastadas e, à direita, encontram-se quase sobrepostas. Conseguimos, concentrando o olhar no balanço, divisar um esguio tronco humano (ocupando o centro da metade superior do papel): os tons escuros em meio ao verde das folhas, acima dele, permitem imaginar o espaço que ocuparia uma eventual cabeça. Esse ser humano estaria de frente ou de costas para o observador? Haveria mais de uma pessoa implicada nas sugestões e nos jogos cromáticos? A imagem é contínua em relação à quarta capa? Quantos balanços (e corpos) aí se representam?
Na quarta capa há um trecho do livro, mais precisamente o conteúdo da página 85 dessa edição. No livro, o título (que foi omitido na reprodução externa) será Oriente e Ocidente e aparece seguido deste texto:
Um grupo de xavantes deixou a aldeia a pé mas depois subiu num ônibus. Usavam cabelos curtos. Eram só homens. A longa viagem os levou a São Paulo. Pareciam um grupo de japoneses circunspectos.
Foram tratados como japoneses quando quiseram ser japoneses. E como índios quando quiseram ser índios.
Usavam um pedaço de madeira em cada orelha para apaziguar os paulistanos. Ou seus espíritos hostis. Não se separaram da madeira.
Voltaram juntos para o cerrado quinze dias depois.
No livro, como na capa, não há recuo indicador de início de parágrafo, mas há um espaço ao final de cada um dos quatro grupamentos que organizam o conjunto. E, como não há o que chamamos “verso”, o leitor em algum momento precisará conferir a folha de rosto, onde se lêem, todas centralizadas, de cima para baixo, as informações, nesta ordem: nome do autor, título do livro, autoria dos desenhos que acompanham a edição (Fernando Lindote) e, antes do nome da editora, a palavra “poesia”. Virando a página de rosto, conhecemos que o projeto de capa deve ser atribuído a Eder Cardoso, “sobre detalhe de frame do vídeo Sem título da série Quintal Adormecido de Letícia Cardoso”.
Esse livro de poesia (como esclarece a página de rosto) apresenta, contudo, outras dificuldades. O índice (página 7) nos informa que haveria quatro seções:
Prefácio: Terra & Raiz & Pedra & Água & Luz, 9
O Sexo Vegetal, 13
Epílogo: Kaapor, 91
Sobre o autor, 95.
O prefácio (página 9) informa que o volume reúne dois textos de inspiração indígena. Que o primeiro seria também oriental. Que o segundo “quer ser autenticamente ameríndio”, embora “mencione o nonsense poem, um projeto político europeu”. Virando-se a página, com tipos que fazem supor um título, lemos “O sexo vegetal” e, à guisa de subtítulo: “Cosmogonias”. As cosmogonias que compõem a obra, ou que se compõem na obra, em oscilação entre Ocidente e Oriente, como sugerem o prefácio e o texto contido na página 85, criam efeitos aproximativos, evocam xavantes de cabelos curtos que parecem um grupo de japoneses circunspectos. Enfim “só homens”, que não se separaram do pedaço de madeira que, alojado em suas orelhas, parece protegê-los da hostilidade da cidade-civilização. A terceira seção do conjunto, o epílogo, contém, ainda, outro signo de hostilidade, na escolha do título “Kaapor”, denominação que evoca grupo indígena particularmente intratável, indócil se preferirem, resistente às tentativas de pacificação e congraçamento no encontro com o mundo organizado. Nessa seção do livro, composta por duas páginas, encontramos “versos”, no sentido de que algumas dessas linhas se interrompem antes da finalização espacial da página.
Coisa estranha
Um blog que comentou os indicados para a premiação da Câmara Brasileira do Livro referiu-se à presença da obra de Medeiros na lista como “a coisa mais estranha” do Jabuti de Poesia, com seus “continhos bem chatos que além de não ter poesia não tem nada relacionado a sexo também”. Poíesis, no grego, fazia supor uma ação inventiva, criadora, imaginativa, como a que se poderia pressupor no componente gon, de cosmogonia. A cosmogonia imagina, inventa um cosmos, muitos cosmos (ainda que não o cosmos), tarefa que poderíamos discernir também na atividade poética. Em cosmogonias ameríndias, como em muitas outras, o ato sexual é criação. Mesmo uma cosmogonia tornada “oficial” como o gênesis bíblico, em Manuel Bandeira gerou uma síntese cosmogônica tão sucinta e atordoante como aquela contida no poema Teresa. Leitores de poesia sabem, além do mais, que o fazer poético com freqüência refere-se a si próprio (metapoetiza-se) valendo-se do recurso ao erotismo e ao ato sexual, não raramente à invenção cosmogônica, como em Teresa.
Que Sérgio Medeiros tenha sido o tradutor do poema maia Popol Vuh (Iluminuras), como indica a nota que fecha o livro, é dado que não poderíamos negligenciar a esta altura. Um leitor mais atento (Cláudio Daniel) assim sintetizou, também em seu blog, na internet:
Não se trata apenas de uma glosa do Popol Vuh quíchua (traduzido pelo autor, aliás, um belo e importante livro publicado pela Iluminuras), nem de poesia erótica, simplesmente, mas de uma série de pequenas narrativas quase cinematográficas, que rompem com os princípios da linearidade e da verossimilhança, construindo outras possibilidades de comunicação poética, em que vanguarda e tradição ancestral se confundem num único totem.
A primeira parte do livro (“O sexo vegetal”, como indica o índice) apresenta, ainda, uma organização que merece comentário. Os diferentes textos que compõem o conjunto vão se sucedendo de forma que parecem comportar dois “modos” compositivos facilmente discerníveis. Um primeiro texto de aparência narrativa parece efetivamente compor uma vocação de algum modo épica, mítica, etiológica. Bastante menos pretensiosa, contudo, do que tais palavras permitiriam supor:
Brasileiros e estrangeiros (profissionais e amadores) praticam ativamente sexo vegetal em suas várias modalidades. Não contarei a sua história nem descreverei a sua ação (meus conhecimentos de suas atividades eróticas não é exaustivo). Quero flagrá-los aos poucos (despretensiosamente) entre uma moita de capim e um arbusto. Nos bosques e nas pequenas florestas. Dobrados sobre canteiros de flores ou contemplando um trevo. Com um figo seco na mão. Ou sentados numa plantação de soja.
Após um texto assim composto (em seu tom narrativo, eventualmente metaficcional, suas frases curtas, descritivas, concisas, calculadamente plurissignificativas) aparece, sucessivamente, ao longo de toda a seção “O sexo vegetal”, um segundo “modo” compositivo, nesse caso, assinalado pela recorrência de um mesmo título, Décor. Os pares (35 pares, 70 textos), parecem opor dois modos complementares de construção imagética, dualidade sobre a qual assenta o conjunto. A eventual complementaridade entre cada ensaio cosmogônico e o décor que vem logo após talvez possa ser observada por algumas notas de leitura sobre o texto Parábola (página 73 do livro, transcrito neste jornal). Se o primeiro texto se organiza em torno de núcleos como máquinas sujas de fuligem, territórios despovoados, fracassos, mortes, testamentos, estagnação, sombras e cinzas, se imagens de paralisia e contenção parecem organizar um certo pendor, digamos, “ocidental” do livro (de Lewis Carroll à aldeia), como não notar o tom sutilmente oriental do décor que se segue? Esse pássaro, promessa de vôo e movimento, reversão do que se propõe no texto que o antecede, quadro delicado em que se suspende o pensamento e algo se ventila por entre as cinzas e sombras da página anterior…
Como sugere a orelha, um livro essencialmente híbrido, híbrido até a raiz e totalmente inadequado ao “horizonte de expectativas” da crítica e do leitor em geral. Na página 16, mencionam-se “pequenos nascimentos”, sugerem-se “devires numerosos”:
Uma cosmogonia não precisa ser bíblica. Nem pressupor um deus único, artífice solitário. A cosmogonia cotidiana nos convém mais: pequenos nascimentos. Devires numerosos? Um gesto simples. Mínimo. A criação necessária ao nosso dia-a-dia. Uma pequenina recriação do mundo a cada hora. Minuto. Ou segundo.
O sexo vegetal é uma cosmogonia. Uma humilde (re)criação do mundo. Humilde e eficaz à sua maneira. Eis a questão.
Por que também expectativas se podem eficazmente reconfigurar.