Recortes de um sonho

Nos versos de "A libertação de Laura", Helena Zelic constrói uma poesia em que lembrar e inventar são manobras fundamentais para forjar o presente
Helena Zelic, autora de “A libertação de Laura”
01/03/2022

Não é raro que em nossas memórias (recentes ou distantes) viva alguém cantando. São canções que, mesmo quando não sabemos a melodia, a letra, o tom, acertamos sempre na lembrança. Uma avó encostada no fogão murmura um samba. Uma tia conserta a barra da calça e cantarola um sucesso de rádio. Um pai canta alto no chuveiro algum modão. Quando essas pessoas partem, fica ainda um pouco delas ressoando na cabeça. Esquecemos a letra, mas na rememoração silenciosa acertamos sempre o que se cantava.

Como nos sonhos, em que falamos com desenvoltura uma língua que não conhecemos na vigília. Quando acordamos, se tentamos falar com a mesma graça, só conseguimos reproduzir um som hesitante. Um balbuciar. É esse balbucio um dos nomes da poesia?

Esse balbucio é o que lemos em A libertação de Laura, de Helena Zelic. Os versos são fruto da convivência da autora com os últimos dias de sua avó, Salua Mattar. Ou pelo menos é isso que deduzimos ao acompanhar os poemas que falam de Salua (como em aos noventa, pelo qual ficamos sabendo da perda da memória da avó) e de paratextos, como o obituário que encerra o livro — que, entre outros nomes, menciona que “salua matar morreu em dezenove de julho de 2019, aos 91 anos”.

Não sabemos, é claro, se o livro é uma espécie de documentário dessa convivência. Também não é isso que importa. A pergunta fundamental a que tenta responder A libertação de Laura não é sobre “como foi” o passado, mas sobre o que restou dele, o que é que se elabora a partir daí. Um dos últimos poemas do livro pergunta:

o que vive do passado
no corpo que habitamos?

o que fica quando a gente escolhe
se finca ou se foge?

o que se passou
de geração em geração
que não é receita não é língua não é cor
e insiste hastear bandeira?
que coisa é essa imóvel e fluída
tão impenetrável?

até quando escutarei
essa voz do além
se o além é eu e mais?

Pelo livro descobrimos que Zelic se afeiçoou à canção árabe que Salua Mattar cantarolava, Ya Laure Hobouki, da qual a poeta apresenta a letra original, uma tradução de seu punho e uma melodia — cada um desses três textos aparece como um poema que o leitor encontra no livro. Mas o que restou não é a canção. É a reminiscência, na poeta, de Salua cantando. E isto é irrecuperável: essa voz cantando. Mas não é toda imagem do passado irrecuperável? Não estamos sujeitos a lidar com o que se foi somente a partir de seus vestígios, como se lidássemos apenas com um eco das vozes que emudeceram?

Premissas fundamentais
No poema em amã, Zelic escreve os seguintes versos, que destaco do contexto um pouco mais extenso do texto: “eu não sei falar árabe”; “o som ainda preso dentro de mim”; “como confiar apenas na memória?”.

Primeiro: a poeta não fala a língua na qual se canta aquilo que ela não quer esquecer. Segundo: não obstante, a melodia se gravou na poeta. Terceiro: a memória sozinha não pode dar continuidade a esse impasse.

(Quanto ao terceiro ponto, tal entendimento também se encontra na formulação dos gregos antigos, que concebiam as musas como filhas da memória: as artes eram tidas como formas que saíam em auxílio da mãe Mnemósine.)

Trata-se de três premissas fundamentais de A libertação de Laura, e que determinam a lei de sua forma. Essa lei erige o que lemos: um diário (acesso indireto à memória) de uma saga (uma aventura, na qual a heroína corre sempre o risco de perder-se). Essa saga é a procura de Helena Zelic não por Salua Mattar, mas por Laura Habuki, que de personagem da canção que ouvia pela avó passa ao estatuto de objeto do desejo. É o que lemos no poema lady laura:

laura, volte
laura, por favor
laura, já não posso
correr atrás de você
como os velhos tempos
estou fraca, laura, venha
me leve para casa, sim, laura

E em a avistei sob o véu das melodias:

quando encontrei laura entendi tudo
são muitas lacunas da história
é duro buscar uma pessoa sem rosto
hubun significa amor
hobouki é o seu amor

O verso “quando encontrei laura” localiza a reunião no passado — onde, sabemos, esse encontro não ocorreu. Mas a poesia não é um relato do que ocorreu, como a história, mas daquilo que poderia ter ocorrido (isso quem nos diz é Aristóteles). A busca de Zelic é uma invenção na memória.

Uma aventura interior: “é assim pelo que nos é familiar/ mesmo quando for inacreditável/ que criamos as ficções/ mais convincentes/ as ficções que são verdade”, diz a poeta.

Formas de desejar
O que Zelic nos oferece, assim, é uma forma: para lidar com o passado, para fazer o luto, para incorporar esse passado na forma de um desejo. É por isso que A libertação de Laura tem em mira “o véu das melodias”, debaixo do qual se insinua também o que se dedica a eros, ao desejo.

No poema nomes, Helena Zelic diz: “salua sempre me disse/ o nome helena significa/ tocha fogo paixão de todos os homens// daí cresci/ e dei de amar as mulheres”. O véu das melodias é o nome que Zelic atribui a essa condição incontornável do desejo: que ele se articula nas experiências de quem deseja, e quem luta contra a memória (individual ou coletiva) se aliena de sua capacidade de desejar.

Se a poesia não é a investigação desse passado, ela é, no mínimo, uma história de formas pelas quais podemos elaborá-lo. Uma pesquisa incessante das formas de desejar.

Aqui, a poeta não está sozinha. A investigação da relação entre memória e desejo é uma das forças motrizes da poesia contemporânea. Ela está presente em outros poetas e artistas que têm inventado maneiras de intervir nos arquivos daquilo que se foi, daquilo que se perdeu, como Aline Motta, Heleine Fernandes, Leila Danziger, Leonardo Gandolfi, Marcos Nascimento e Marília Garcia.

“O sonho é a realização de um desejo”, assim nos ensina Freud em A interpretação dos sonhos. Também que “a criança e seus impulsos seguem vivos no sonho”. É por isso que muitos dos poemas de A libertação de Laura se assemelham a sonhos. Como em uma noite com deus:

habitava pouco a noite da casa dela
quando criança fazíamos raras visitas
uma vez fui dormir lá ela queria
que fôssemos mais próximas 

deitei na cama que pertencia ao meu pai
ela me cobriu me disse boa noite
helenita         apagou
a luz do quarto que pertencia ao meu pai

do escuro se projetou a muda forma
avançando a penumbra um demônio
gárgula abstrata do sem-tempo

chorei muito alto     ela se ergueu
sobre sua cama um crucifixo e a presença

sobre a minha sombra do armário
que antes era do meu pai
a sombra que antes era
do meu pai    vem me buscar

A terceira estrofe qualifica “um demônio”, “uma gárgula abstrata do sem-tempo”, que avança da penumbra. Como não ler aí, no centro do poema, a presença de eros? Antes da tradição cristã, o demônio, o daemon, não era uma criatura maligna, mas uma espécie de força que nos habitava a todos.

Eros, o deus do amor e do desejo, por exemplo, é concebido por Sócrates e por Diotima, no Banquete de Platão, como um daemon que possibilita o encontro entre o que é humano e o que é divino. Algo que parece acontecer no encontro amoroso. Mas por que o poema toma a forma de um pesadelo?

Ora, some-se ao que se disse agora o que já disseram do desejo poetas da antiguidade, como Safo, e contemporâneas, como Anne Carson: eros é doce-amargo. Às vezes se apresenta a quem deseja com um gosto inimigo. Como nos pesadelos.

Zelic sabe que esses polos se alternam com grande facilidade, quando diz, por exemplo, no poema nós que ficamos, que “laura é o fogo/ incêndio”. Uma das epígrafes do livro é uma canção de Itamar Assumpção: “quando você menos espera/ ela chega/ fazendo do teu coração/ o que bem ela fizer.”

A libertação de Laura
Helena Zelic
Macondo
76 págs.
Helena Zelic
Nasceu em São Paulo (SP), em 1995. Publicou o livro de poemas Durante um terremoto (2018) e as plaquetes 3.255km (2019) e Caixa preta (2019).
Rafael Zacca

Poeta e crítico literário. É doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Professor de Estética do departamento de Filosofia da PUC-Rio. Ministra oficinas de criação literária. Autor de O menor amor do mundo (7Letras, 2020, poemas) e Formas nômades (Urutau, 2021, crítica).

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