1959. As janelas do Suplemento Literário do Jornal do Brasil não têm grades. As grades, quem as põe é Maura Lopes Cançado. Maura aponta um lápis, datilografa duas linhas, se enfurece com Reynaldo Jardim, com Ferreira Gullar, com Assis Brasil, com Carlos Heitor Cony. “Esta é Maura Lopes Cançado, a que escreveu No quadrado de Joana.” “Ah, sei… O conto é realmente bom. O que perturba um pouco é a catatonia da protagonista.” Devo escrever sempre no princípio de cada página do meu diário que sou uma psicopata. Talvez essa afirmação venha despertar-me, mostrando a dura realidade que parece tremular dentro da névoa longa e difícil que envolve meus dias, me obrigando a marchar, dura e sacudida — e sem recuos.
Maura Lopes Cançado (1930-1997), a desconstruída — intervalo entre sanidade e loucura. As janelas do Hospital do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, têm grades. Mas aversa a grades, quem as remove é Maura Lopes Cançado, sempre que deseja fugir para o mar. Se alguém a visse por qualquer ângulo, nada teria a acrescentar, além de uma mulher parada numa praia, olhando. Impossível mesmo a outro jurar que ela via, nisso consistindo a tranqüilidade de quem a visse. A qualquer pessoa sendo possível, no máximo, julgá-la não vendo exatamente, recolhida no pensamento: pensar no pássaro e, sem caminhos, vê-lo voando à mão. Nas lutas fundem-se heróis. E até mesmo se supera a vida, sendo possível a eternidade. Quanto a ela, em breve seria eterna — num limite mínimo de tempo. Achava-se no limiar. Começada há pouco, sua história tinha um título: A história do ver.
“O hospício é árido e atentamente acordado. Em cada canto, olhos cor-de-rosa e frios espiam sem piscar.” Quer nos poros da praia, quer nos do quadrado branco, Maura marcha. Maura marcha completando o pátio. Marcha completando o pátio, o fim da linha sendo justamente o princípio da outra, sem descontinuidade, quebrando-se para o ângulo reto. Que importa que o fim e o princípio sejam a cara e a máscara da mesma moeda? Maura marcha. Não cede um milímetro na posição do corpo, justo, ereto. Porque Maura julga-se absolutamente certa na nova ordem. Assim, anda de frente, ombro direito junto à parede. Teima em não flexionar as pernas, um passo, outro e mais outro, a sola quente dos pés através do solado gasto. Maura marcha, as pernas imóveis, o pensamento perplexo. Finalmente acha-se na metade da quarta volta, da quarta vez, todo o pátio contido no âmbito do olhar parado. Maura marcha. Anda certo, costas deslizantes como lâminas, na proteção do seu tempo: o muro. Repete sentindo a certeza da quarta vez. Mais e mais — porque cumpre um dever.
Invado o quadrado de Maura em busca das coordenadas de seu universo às avessas. De seu universo elevado ao quadrado, ao cubo, feito de jaulas justapostas. Passear por Maura Lopes Cançado é o mesmo que passear pela instalação de um artista em chamas: instalação e artista sendo a mesma pessoa, o mesmo incêndio. Maura marcha, convertida em teatro de marionetes. A título de apresentação, o titereiro pega para si a fala que já foi de Reynaldo Jardim: Minhas senhoras e meus senhores, eis a tranqüila fúria. Ei-la aberta à emoção e ao tédio. Ei-la cantando a ficção real do cotidiano alumbrado. Ei-la, pânico sem susto, desvairando o pensamento claro, assombrando o sonho preciso, limpo e justo do pesadelo em vigília. Calmo sobressalto. Eis o canto mais alto de ser, sendo a um tempo medo, lúcido punhal e carne transpassada.
Hospício é deus (1965) e O sofredor do ver (1968). Livros que Maura carrega consigo enquanto marcha. Enquanto marcha completando o pátio, o fim da linha sendo justamente o princípio da outra, sem descontinuidade, quebrando-se para o ângulo reto. Livros cujos parágrafos perderam as palavras, parágrafos que precisam ser reescritos imediatamente. Dois livros, duas sentenças de vida e de morte. Maura os reescreve todos os dias, essa a única maneira de não se perder da própria sina. Não cede um milímetro na posição do corpo, justo, ereto. Porque Maura julga-se absolutamente certa na nova ordem.
Maura, geometria do ódio, tem uma boneca de pano que responde, assassina, as perguntas dirigidas a ela, Maura: “O que me assombra na loucura é a distância — os loucos parecem eternos. Nem as pirâmides do Egito, as múmias milenares, o mausoléu mais gigantesco e antigo, possuem a marca de eternidade que ostenta a loucura”. Maura engole as palavras, não diz nada. É a boneca quem, assassina, sempre assassina, carrega seus livros e lhe dita os parágrafos perdidos. Maura não é Maura, é a fúria da boneca: “Nasci numa bela fazenda do interior de Minas. Fui uma criança bonita, todos dizem, e sei pelos retratos. O sexo foi despertado em mim com brutalidade. Cheguei a ter relações sexuais com meninas da minha idade. Isso aos seis ou sete anos. Aos catorze anos quis ser aviadora, entrei para um aeroclube pretendendo obter o brevê de piloto. Não consegui o brevê, casei-me com um aviador, jovem de dezoito anos. Papai se opôs tenazmente. Casada, pensei logo em me descasar, tão imediata foi a decepção”.
Maura marcha completando o pátio. Marcha completando o pátio, o fim da linha sendo justamente o princípio da outra, sem descontinuidade, quebrando-se para o ângulo reto. Com ela marchamos, e a marcha já não é mais do que uma mancha na retina cansada. Fazemos parte do pátio, fazemos parte de Maura, fazemos parte sobretudo dos muros da boneca de Maura: “Diante da morte não sabia para onde voltar-me: inelutável, decisiva. Hoje, junto dos loucos, sinto certo descaso pela morte: cava, subterrânea, desintegração, fim. Que mais? Morrer é imundo e humilhante. O morto é nauseabundo, e, se observado, acusa alto a falta do que o distingue. A morte anarquiza com toda a dignidade do homem. Morrer é ser exposto aos cães covardemente. Conquanto nos dois estados encontre ponto de contato — o principal é a distância. Ainda que só diante do louco tenha experimentado a sensação de eternidade. Nele não encontramos a falta. Nos parece excessivo, movendo-se noutra espécie de vibração. Junto dele estamos nós. Não sabendo situá-lo, ficamos em dúvida: onde se acha a solidão? O louco é divino na minha tentativa fraca e angustiante de compreensão. É eterno.”
Maura, a sofredora do ver. Na Casa de Saúde Doutor Eiras, a boneca de Maura matou outra interna. Quem pagou o pato foi Maura, e pagou no Hospital Penal da Penitenciária Lemos Brito. Olhos fechados, quase no escuro, desligou-se para o pensamento. Em sombras compreendia o mar, vendo-o lento, contínuo. Perdeu-se mais, envolvida pela massa escura, não totalmente em contato e sem comprometer-se: o que se larga em tempo num banco, deixando os dedos soltos e alegres. Maura, a assombrada pelo ringue quadriculado da loucura. “Estou de novo aqui, e isto é — Por que não dizer? Dói. Será por isso que venho? — Estou no hospício, deus. E hospício é este branco sem fim, onde nos arrancam o coração a cada instante, trazem-no de volta e o recebemos: trêmulo, exangue — e sempre outro.”
Dia virá em que Maura finalmente se libertará da praia, do pátio, do quadrado elevado ao cubo. Nesse dia não terá mais de reescrever seus livros, pois estarão perdidos e esquecidos. Nesse dia, aprisionados no cárcere que nunca havia sido nosso, mas tão só de Maura, não conseguiremos segui-la para fora do hospício, para longe de deus. Nesse dia a tranqüila fúria voltará a agitar suas bandeiras: 1959. As janelas do Suplemento Literário do Jornal do Brasil não têm grades. As grades, quem as põe é Maura Lopes Cançado. Maura aponta um lápis, datilografa duas linhas, se enfurece com Reynaldo Jardim, com Ferreira Gullar, com Assis Brasil, com Carlos Heitor Cony, com Maura Lopes Cançado.