Reconhecer um mestre negro

Seja na prosa, seja na poesia, Oswaldo de Camargo é, sem dúvida, um dos principais escritores brasileiros de todos os tempos
Oswaldo de Camargo por Oliver Quinto
01/01/2024

Mais de 60 anos já se passaram desde a publicação daquele livro assinado por um “poeta da jovem geração negra brasileira” que, apesar da “fala simples”, produzia versos nos quais transparecia “um desejo vivo de ascensão social”, consoante o texto de orelha assinado por Sérgio Milliet — e que, embora ainda deixasse a desejar no que tange à “técnica do verso”, apresentava a “afirmação de uma atitude diante da vida e dos problemas de sua raça”. O poeta era Oswaldo de Camargo; o livro era 15 poemas negros, publicado em 1961, ainda no momento inicial da trajetória literária de um dos mais importantes nomes da literatura negra brasileira.

Na verdade, é graças à produção crítica assinada por figuras como Oswaldo de Camargo que hoje podemos assim designar uma tradição literária autônoma, caracterizada por um conjunto de elementos temáticos e formais; recordem-se a antologia A razão da chama (1986), o seminal volume O negro escrito (1987) e o ensaio A mão afro-brasileira em nossa literatura, este coligido na obra coletiva A mão afro-brasileira (1988), fundamentais pilares para uma tentativa de construção do que se poderia considerar um repertório canônico negro brasileiro.

Desde então, aquele jovem que passara a primeira infância na fazenda Sinhazinha Félix, “entre as rudezas da Serra da Bocaina e seus verdes cafezais” — segundo lemos no mencionado texto de orelha —, vem construindo uma trajetória que, por suas relevância e consistência, demanda o reconhecimento de Oswaldo de Camargo como um dos mais importantes intelectuais brasileiros vivos, em que pese a indolência de nossos meios literários e acadêmicos, nada surpreendente quando consideramos o racismo historicamente presente no Brasil.

Cerca de seis décadas após a sua estreia literária, as obras de Oswaldo de Camargo finalmente chegam a uma grande editora brasileira — com a publicação, pela Companhia das Letras, de novas edições de O carro do êxito (2021) e A descoberta do frio (2023); e da coletânea poética 30 poemas de um negro brasileiro (2022). Por um lado, há que se reconhecer a importância dessas publicações — que, embora tardiamente, propiciarão o conhecimento da obra de um mestre de nossa literatura por um público mais amplo. Por outro lado, há que se ponderar que o tratamento dispensado pela editora a esses livros permanece aquém da importância de Oswaldo de Camargo para a literatura brasileira.

Nesse sentido, a nova edição de O carro do êxito alcança melhor resultado, por contar com um excelente prefácio assinado pelo escritor e intelectual negro Mário Augusto Medeiros da Silva. Intitulado Buscas na vida rota, o texto traz elementos fundamentais para o entendimento dos contextos de produção e de publicação da obra, resgata a sua trajetória editorial e sugere importantes caminhos para a leitura dos contos, satisfatoriamente complementados pelas notas de Oswaldo de Camargo. Com isso, quem tem em mãos o livro dispõe de importantes subsídios para lidar com as narrativas nele coligidas — como a trajetória do “menino do Oboé”, em meio às expectativas e tensões políticas da comunidade negra; a comovente viagem de João para Maralinga, à procura de uma vida melhor para o seu filho — antevéspera da despedida e começo de um incerto percurso; ou a sinistra sina de Genoveva, a “mulata linda” que desaparece misteriosamente após ser convidada pela sinhazinha ao casarão, vitimada por acontecimentos enunciados nas entrelinhas. Também as belíssimas ilustrações de Marcelo D’Salete e a quarta capa, assinada por Jeferson Tenório, valorizam inegavelmente o volume. Não obstante, pode-se ponderar: houve um convite para incluir um texto assinado pelo próprio Oswaldo de Camargo, que lhe facultasse dissertar sobre a construção do livro até a sua primeira publicação, em 1972, e os posteriores processos associados à sua republicação (alterações nas narrativas; inclusão e exclusão de contos), assim produzindo um documento de crucial importância para pesquisadores?

Projeto estético
Para tratar de 30 poemas de um negro brasileiro, é necessário dizer algo sobre as primeiras obras publicadas por Oswaldo de Camargo. A primeira, datada de 1959, foi Um homem tenta ser anjo; conquanto traga as marcas de um autor jovem e estreante, já se fazem presentes aspectos formais e temáticos característicos de sua produção literária — o que apenas evidencia o fato de que aquele jovem de vinte e poucos anos já gestava um projeto estético que se concretizaria nas décadas subsequentes. O texto de orelha de 15 poemas negros, publicado dois anos depois, trazia relevantes informações sobre um negro que procurava o seu lugar no mundo — resgatando a sua internação no Preventório Imaculada Conceição de Bragança Paulista e o seu ingresso em um ambiente de “estrutura quase setecentista”, o que lhe amoldaria a alma “para o arcaísmo, o barroco e pristinas épocas”; sua afeição por figuras de destaque no imaginário católico da época; e a “forte tendência ao misticismo” que o levaria a tentar a admissão em diversos seminários, nos quais não seria aceito por ser negro — quer dizer: por apresentar um suposto pendor à sensualidade incompatível com o que se esperava de um padre. Isso ensejaria a “volta ao mundo” de Oswaldo, propiciando o seu profundo comprometimento existencial com uma militância literária que, como reconheceria o próprio autor, conserva algo desse apostolado.

Esse percurso transparece não apenas no título de Um homem tenta ser anjo, mas também nos poemas da obra — cuja incipiência não obsta a construção de versos poderosos:

Meu Deus! meu Deus! com que pareço!?
[…]
Vós me destes uma alma, Vós me destes
e eu nem sei onde está…
Vós me destes um rosto de homem,
mas a treva caiu
sobre ele, Deus meu, vede que triste,
todo preto ele está!

Se nos versos de 15 poemas negros transparece um nítido amadurecimento, bem como um rigor na estruturação do discurso lírico, uma força plástica e um manejo de recursos retóricos que já chancelavam a inscrição de Oswaldo entre os nomes maiores de nossa poesia (“Vê:/ A manhã se espalha nos quintais, alegra-se a cidade e há cantigas/ no ar…/ Tenho em meus gestos um rebanho inteiro/ de atitudes brancas, sem sentido,/ que não sabem falar…// Eu penso que a manhã não interpreta bem/ a superfície escura desta pele,/ que pássaro nela vai pousar?”), são perceptíveis os traços de continuidade em relação à obra anterior, o que nos leva a questionar: por que em 30 poemas de um negro brasileiro não há peças de Um homem tenta ser anjo, mas apenas composições de 15 poemas negros, além de outros quinze poemas publicados nos posteriores volumes O estranho (1984) e Luz & breu (2017)? Trata-se de uma opção autoral? Que tipo de decisão foi tomada acerca do poema Procura?

O volume editado pela Companhia das Letras reproduz o prefácio presente na primeira edição de 15 poemas negros, assinado por Florestan Fernandes, com o acréscimo de uma valiosa carta-resposta assinada por Oswaldo de Camargo; mas não há textos assinados por nomes da crítica negra atual, e a apresentação da trajetória do autor se resume ao que está nas orelhas do livro. Desse modo, a obra poética camarguiana não recebe a valorização que merece, ainda que a sensibilidade leitora inevitavelmente receba o impacto de versos poderosos (“Eu tenho a alma e o peito descobertos/ à sorte de ser homem, homem negro,/ primeiro imitador da noite e seus mistérios.”, lemos em Atitude; ou, em Antigamente: “Antigamente eu morria,/ antigamente eu amava/ antigamente eu sabia/ qual é o chão que resvala/ se o passo da gente pesa.”). Cabe mencionar, não obstante, as poderosas imagens de capa e quarta capa, de O Bastardo, que recriam fotografias históricas de Oswaldo de Camargo.

Uma obra-prima
A reedição mais recente de A descoberta do frio — primorosamente ilustrada por Kika Carvalho, também autora da imagem de capa — oferece ao público brasileiro uma nova oportunidade para conhecer um livro que, publicado pela primeira vez em 1979 (e não 1978, como afirma a orelha da edição da Companhia das Letras), merece, sem favores, a qualificação de obra-prima. No centro da narrativa, está um magistral recurso alegórico: a aparição de um frio que só acomete pessoas negras, a exemplo do menino Josué Estêvão — que, embora utilizando três gorros, cobrindo as mãos com retalhos de flanela e metendo nos tênis várias tiras de couro de gato, tremia e batia os queixos a ponto de sequer conseguir falar. Assim como, nas obras de Carolina Maria de Jesus, a fome não é apenas uma sensação física, o frio que encontramos no livro de Oswaldo de Camargo demanda uma interpretação atenta a condicionamentos existenciais e políticos. Quem sofre o frio “esfria, gela, chora. Quer desaparecer e desaparece”. O universitário Laudino da Silva, que anuncia o frio logo depois de Zé Antunes, afirma:

Um malungo nesse estado não mostra a cara ao sol. Ele pensa que fede. É muita desgraça. Ele vira micróbio, anda no meio dos micróbios. Se o cara crê em Deus, sua reza só pode ser esta; Meu Deus, me descrie, me descrie! A zabumba do desespero bate na alma do infeliz. É isso!

Não obstante, o frio é “coisa velha”, a tal ponto que negros mais velhos sequer o veem (“pois o frio há tempo senta-se à mesa com eles, vigia à sua porta, ri… Veem talvez o frio como geada, gélida ventania. Mas o frio, tirando o caso singular do Josué, se disfarça de brisa, e venta, e estraçalha, e desbasta a esperança da gente”).

A imposição de lidar com “o velho, alvo e impiedoso frio” mobiliza a comunidade negra; em termos literários, isso nos possibilita apreciar o domínio de Oswaldo de Camargo na arte da criação de personagens e o seu fundamental papel como memorialista. O embate entre diferentes coletividades, em uma pluralidade de cenários (o Grupo Malungo, que se reunia no bar de mesmo nome; a associação de beletristas frequentadora da Toca das Ocaias; os “pretos velhos” do “Movimento Participação Negra”; os “Vigilantes Escolhidos” que se encontravam na casa de Joana Laureano), compõe um riquíssimo retrato de uma geração de pessoas negras que procurava entender e lidar com o fenômeno. Muitas, portanto, as questões que A descoberta do frio nos propõe: como entender os sentidos alegóricos da doença imaginada por Oswaldo de Camargo? Como analisar a riqueza formal e estilística da narrativa, que incorpora elementos cronísticos e poéticos? Como dimensionar seu impacto para a tradição negra brasileira, bem como sua relação com vertentes estéticas e filosóficas como o afropessimismo ou a ficção especulativa negra? A edição da Companhia das Letras não abre espaço para questionamentos desse tipo, uma vez que se limita a reproduzir o prefácio publicado na edição de 1979, assinado por Clóvis Moura — que, embora aborde aspectos relevantes, é um produto de seu tempo (vejam-se as observações sobre Machado de Assis e Castro Alves).

É inegavelmente importante que as obras de Oswaldo de Camargo sejam publicadas por uma gigante editorial brasileira — e em volumes que, importa ressaltar, trazem capas e ilustrações de artistas negros. Não obstante, caberia à Companhia das Letras demonstrar seu efetivo reconhecimento da importância de um escritor e intelectual diversas vezes laureado (inclusive por serviços prestados à literatura negra brasileira, como a Medalha de Mérito Cruz e Sousa e a Medalha Zumbi dos Palmares), fomentando a ampliação de sua fortuna crítica e oferecendo subsídios que propiciem a sua recepção contemporânea — inclusive no que tange a uma tradição crítica negra produzida por intelectuais que percorrem as trilhas abertas por precursores como o próprio Oswaldo de Camargo ou, para citar nomes constantes das dedicatórias de alguns dos livros aqui comentados, Cuti e Henrique Cunha. Assim, seria possível acreditar num real comprometimento com a valorização de um amplo contingente de escritoras e escritores historicamente menosprezados pelo mercado editorial brasileiro, por razões que mestre Oswaldo nos ensinou a reconhecer.

O carro do êxito
Oswaldo de Camargo
Companhia das Letras
143 págs.
30 poemas de um negro brasileiro
Oswaldo de Camargo
Companhia das Letras
116 págs.
A descoberta do frio
Oswaldo de Camargo
Companhia das Letras
133 págs.
Oswaldo de Camargo
Nasceu em Bragança Paulista (SP), em 1936. Foi revisor do jornal O Estado de S. Paulo, redator do Jornal da Tarde, diretor de cultura da Associação Cultural do Negro e um dos principais colaboradores de periódicos da imprensa negra.
Henrique Marques Samyn

É professor de literatura e escritor. Autor de Uma temporada no inferno e Levante.

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