Recife, 1964: degradante e degradado

Ronaldo Correia de Brito explora dramas individuais para tratar de grandes questões sociais
Ronaldo Correia de Brito, autor de “Estive lá fora”
01/01/2013

Há quase meio século, no dia 31 de março de 1964, um golpe militar depôs o presidente João Goulart, que havia sido eleito pelo voto popular, e implantou no Brasil um regime autoritário que durou vinte e um anos. Goulart tinha inclinações comunistas, e foi esse o motivo de uma parcela importante da sociedade —leia-se: a que detinha o dinheiro, somada à classe média em seu entorno —ter apoiado o golpe. No auge da paranóia anticomunista, os Estados Unidos também chancelaram discretamente aquele ataque à democracia, que ocorria, é claro, fora de suas fronteiras de país orgulhoso da fama de ser o mais democrático do mundo. O Ato Institucional n˚5, baixado em dezembro de 1968 pelo presidente Costa e Silva e revogado 11 anos depois, fechou o Congresso, suspendeu as garantias individuais e jogou o Brasil no período mais negro de sua história recente, tão próximo de nós que ainda gera polêmica e notícia, e vai continuar gerando até que se consiga indenizar ou sepultar condignamente todas as vítimas de suas atrocidades.

Estive lá fora, segundo romance de Ronaldo Correia de Brito, tem como cenário o Recife nos primeiros quatro anos da ditadura militar, que vão desembocar no famigerado AI-5. O livro conta a história de Cirilo, cearense que deixa a casa paterna em sua pequena cidade interiorana e vai para a capital de Pernambuco estudar medicina, uma trajetória similar à do próprio autor (Brito deixou Crato, no Ceará, e chegou ao Recife em 1969, ou seja, logo após o período em que está ambientado o romance). Setecentos quilômetros separam as duas cidades, distância mais do que suficiente para deixar Cirilo à mercê da própria sorte, contando os trocados para sobreviver na metrópole e tendo de mandar dinheiro para ajudar a família, empobrecida após o pai ter quebrado nos negócios. Sua minguada renda compõe-se de um salário miserável de professor de estivadores no Sindicato dos Portuários e de aulas particulares a meninos ricos. Cirilo traz consigo uma missão espinhosa confiada pelos pais: encontrar Geraldo, seu irmão mais velho e estudante de engenharia antes de se tornar líder estudantil, entrar na resistência ao novo regime e, por conseqüência, ser obrigado a viver na clandestinidade.

Cirilo carrega outro triste fardo: ele veio ao mundo depois de sua mãe ter enfrentado dois partos frustrados, dois irmãos que não vingaram e fizeram crescer sobre ele uma responsabilidade terrível. Cirilo não quer desapontar os pais, teme que Geraldo sucumba nos porões da ditadura e até consegue saber alguma notícia do irmão. Mas, ao mesmo tempo, diferenças de personalidade e desacertos antigos, mais do que o risco em nada infundado que correria numa tentativa de aproximação, acabam postergando a decisão de procurá-lo. Ainda por cima, sem que ele nada tenha a ver com a militância de Geraldo nem pense em aderir a nenhuma causa de natureza política, embora contestador, Cirilo sofre a pecha de ser irmão de um subversivo. Contra ele pesa ainda o aspecto molambento, incompatível com o esperado de um futuro profissional da área da saúde: assim resume um professor ao somar a nota máxima obtida num exame oral à nota zero pela falta de asseio e disciplina, dividindo por dois o resultado para chegar à nota final. Tampouco é popular junto aos colegas, incomodados com “seus cabelos grandes, a calça baixa mostrando os pentelhos, a camisa curta, o ar de desprezo pela turma”. Para completar o quadro, Cirilo apresenta tendências suicidas, e o livro abre justamente com uma cena do personagem prestes a se jogar nas águas poluídas do rio Capibaribe. O suspense criado serve como um aperitivo da tensão que vai acompanhar todo o desenvolvimento da trama, uma ferramenta que o autor maneja com destreza.

A vida precária e promíscua numa casa de estudantes, a falta de dinheiro, a degradação e a violência que o crescimento desordenado começa a impor a uma das maiores e mais belas capitais brasileiras, o ambiente universitário sob o cabresto dos militares que tentam a qualquer custo controlá-lo, o alvorecer da revolução cultural que vai explodir mundo afora no tumultuado 1968, todos esses elementos tecem um pano de fundo às angústias do próprio personagem e acabam se confundindo com elas, numa concepção essencialmente naturalista.

Cirilo, como de resto todos os demais personagens, passa ao largo da idealização para ser retratado em toda sua complexidade humana: dotado de beleza e virilidade juvenis, veste-se com roupas surradas e sujas provindas de um lote de donativos do governo norte-americano aos despossuídos brasileiros; tem retidão de caráter, mas foge ao compromisso assumido perante os pais e não vacila ao lhes oferecer desculpas mentirosas para a relutância em procurar o irmão; divide a namorada com um colega até uma crise de ciúmes fazê-lo romper o triângulo; freqüenta, com a mesma desenvoltura, ambientes tão diferentes como a faculdade, o apartamento da namorada rica, a sede do sindicato ou o refúgio dos pescadores que bebem e se drogam embaixo de uma ponte; tem personalidade depressiva e autodestrutiva, mas também leitura e senso crítico, além de ser bom aluno. Cirilo não se enquadra naquele modelo de rapaz que se sonha para genro, mas o leitor logo acaba torcendo para que ele resolva seus conflitos existenciais e acerte o passo na vida. E, se algo de esperançoso emergir das entrelinhas, será a sensação de que falta pouco, muito pouco para isso.

Forçando limites
Degradante e degradado são os adjetivos mais apropriados ao cenário, além de formarem uma idéia que perpassa toda a história. Seja pela pobreza endêmica que não se restringe aos cinturões de miséria e se impõe a toda a sociedade, seja pelos malefícios do progresso insustentável ou pelas indignidades promovidas pelo regime de exceção, não há o que escape de uma deterioração profunda e que parece não ter volta. Sujeira, maltrato, humilhação fazem parte do cotidiano dos recifenses menos favorecidos que, apesar de tudo, sobrevivem com estoicismo ao massacre diário. O contraponto à feiura retratada quase sempre remete ao passado, seja ele a exuberância da natureza antes de ser poluída ou a beleza arquitetônica que um dia também foi opulenta e vai aos poucos se arruinando. A desigualdade social é aquela com que todo brasileiro, em maior ou menor grau, desde há muito já se acostumou:

Os patrões como nomeiam os que possuem mais dinheiro do que eles, o que significa a população inteira do Recife não sentem dor na consciência ao se empanturrarem de comida e bebida, olhando do primeiro andar de suas mansões as palafitas da ilha do Leite, bem ao longe. O incômodo é estético, os pobres criam um fundo realista demais para as sebes bem-aparadas do jardim, os postes de ferro fabricados na Inglaterra e os jarrões de antúrios vermelhos.

Como se pode ver, Brito tem uma prosa direta e de forte acento. Ela é bem construída, flui com naturalidade e mantém o racionalismo da narrativa a despeito de abordar um momento histórico que ainda lateja como um nervo exposto e que facilmente pode descambar para o juízo de valor, algo sempre indesejado em literatura de ficção. Junta-se a isso as mazelas sociais, e a tentação ao panfletário, em algum grau, torna-se quase irresistível. Brito está constantemente desafiando os limites de até onde pode chegar sem ceder a ela, uma situação análoga à de Cirilo em relação a seus delírios suicidas. O discurso é sempre muito racional, dispensando meias palavras e eufemismos e apresentando uma crueza adequada ao contexto.

Além disso, Brito é ambicioso como escritor, talvez com a intenção, perfeitamente legítima, da posteridade. A reconstrução histórica, a crítica aos hábitos e costumes do universo sobre o qual se debruça, as grandes questões sociais são suas principais preocupações como ficcionista. Para ele pouco interessam as inquietações comezinhas de personagens comuns, salvo se for para lhes dirigir um olhar demolidor. O que importa não é a imersão psicológica no personagem, mas seu movimento na trama, com o aspecto social sempre à frente do individual.

Seguindo uma tendência contemporânea, Brito gosta de explorar a intertextualidade. São várias as citações —e não há nada de errado nisso —, algumas delas detalhadas numa Nota de Autor ao final do livro. Outras, contudo, vêm explicadas à medida que aparecem; nesses momentos, o discurso ganha um tom enciclopédico e destoante, mas nada que o comprometa seriamente.

Uma opinião publicada no jornal Correio Braziliense e transcrita na contracapa: “Ronaldo Correia de Brito está forçando nossa literatura a mudar”. Tomada fora do contexto original, a afirmação talvez soe um pouco exagerada. O que não se pode negar: sempre que um bom livro é aportado a esse universo tão vasto e tão diverso a que chamamos de literatura brasileira, ela, como um todo, estará mudando. E para melhor.

Estive lá fora
Ronaldo Correia de Brito
Alfaguara
295 págs
Ronaldo Correia de Brito
Nasceu em 1951, no Crato (CE). Iniciou sua carreira literária nos anos 1980. Médico de formação, já tinha publicado coletâneas de contos e crônicas (Retratos imorais, Livro dos homens, Faca, Crônicas para ler na escola), um livro infanto-juvenil (O pavão misterioso) e peças de teatro quando lançou Galiléia, seu primeiro romance, traduzido para o francês, o espanhol e o hebraico, com o qual venceu o Prêmio São Paulo de Literatura em 2009. Estive lá fora, lançado em setembro de 2012, é seu segundo romance.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

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