Receita incompleta

"Americanah", de Chimamanda Ngozi Adichie, acaba diluindo sua crítica social numa história de amor
A nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie
07/03/2015

As famigeradas oficinas literárias sobrevivem às custas dos incautos. É lá que eles costumam, incansavelmente, procurar a receita para escrever e fazer sucesso. Tem receita para todo gosto.

Também tem os que misturam ingredientes e colocam o resultado à venda.

Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie, é exemplo dessas misturas, porém bem misturada. Se bem que em alguns pontos percebe-se o excesso de açúcar…

Americanah narra uma história de amor? Sim. A história de amor carrega todos os clichês das histórias de amor? Sim.

Americanah conta uma história em que a internet tem papel significativo? Sim. Ifemelu é blogueira e faz abordagens gerais, mas escreve principalmente sobre o muitas vezes velado racismo norte-americano.

Americanah deve ser lido como um romance de formação? Deve. Ao longo do livro, Ifemelu vai percebendo o que é a vida em sociedade, sobretudo em uma sociedade que não é a sua. E como diário de viagem? Também, ambientado em Estados Unidos, Nigéria e Inglaterra.

Há forte presença do feminismo? Sim. Ainda menina, Ifemelu percebia algo anormal nos relacionamentos entre homens e mulheres. Presenciara sua tia sendo tratada como mero objeto sexual ou doméstico.

O leitor encontrará mais uma vez o nefasto politicamente correto? Não.

Trata-se de um grande livro, uma grande narrativa? Em sua extensão, sim. Entretanto, déjà vu, nenhuma novidade para o leitor de James Baldwin.

Chimamanda atira para todos os lados, mas foge à regra e usa a irreverência para abordar o racismo. Evita clichês ao tratar da imigração, mais precisamente quando se ocupa do status do imigrante.

Menos extenso, Americanah manteria a intensidade, sem diluir a crítica social numa calda exageradamente adocicada da previsível história de amor.

Rumo à América
Americanah é o documento da via crucis de Ifemelu. Ela deixa seu país natal, a Nigéria, para realizar seus estudos na Filadélfia. A autora, que de boba não tem nada, sabe que sair, simplesmente sair, não rende uma história. Ou, caso renda, não atrairá público. Isso mesmo, arguto leitor: Ifemelu deixa para trás o grande amor de sua vida, Obinze.

A autora dá início ao drama quando Ifemelu decide retornar ao seu país. Enquanto ela reflete acerca de suas decisões, a cabelereira refaz seu penteado afro. Uma mulher negra mexendo na cabeça de outra mulher negra, como a despertá-la. Ifemelu pensa… Pensa sobretudo naquilo que a espera.

Enquanto isso, no livro prossegue o calvário da protagonista. Assim que desembarcou nos Estados Unidos, ela despertou para o mundo; percebeu estar sozinha em uma terra estranha, estranhíssima. A seguir, se dá conta de que a cor de sua pele carrega um sentido e uma importância jamais conferidos por ela, agora só e diferente. Ou melhor, não estará só, tão só, devido a essa diferença, a cor da pele. Ao leitor fica bem claro que até o momento do desembarque a protagonista não fazia a menor ideia de sua negritude, tampouco imaginava que naquele lugar existisse alguém de cor branca. Talvez a autora tenha usado isso apenas para causar impacto no leitor. No leitor desatento.

Americanah tem seu grande momento na força das personagens, mas a ingenuidade de Ifemelu leva o leitor a imaginar uma pessoa alienadíssima ou arrancada de uma tribo selvagem. Fica a impressão de jamais ter chegado em sua terra qualquer linha a informar da existência de preconceitos nos Estados Unidos e em qualquer outro país. Quer um exemplo? Aqui está: dia desses um jornalista vestiu um quipá durante dez horas nas ruas de Paris e foi extremamente hostilizado. Imagine uma negra nos Estados Unidos. Não precisa, você sabe. Claro que sabe.

É exatamente nesse país que durante uma década e meia Ifemelu tentará viver como se americana fosse, livre das segregações. Entre muitos fracassos e alguns sucessos, ela se estabelece, mas acaba por refazer seus passos e aterrissar em seu país natal. Lembre, atento leitor, que existe a história de amor.

Num primeiro momento, o leitor poderá condená-la por isso, entender como uma atitude intempestiva. Mas logo perceberá se tratar de algo estudado, pensado, uma decisão que levou tempo até amadurecer. É exatamente sobre esse pilar, o amadurecer da ideia do retorno, que se estrutura o romance de Chimamanda Ngozi Adichie.

A narrativa transcorre ora no presente, ora no passado, e o leitor se vê entre incessantes idas e vindas. Não fosse a “manjada” história de amor, Americanah não receberia tantos elogios mundo afora. A maioria dos leitores de Chimamanda, não tenho dúvida, não suportaria uma história com abordagem racial sem esse lenitivo edulcorado. Americanah, apesar das inúmeras possibilidades de fuga, é um romance introspectivo e complexo se levarmos em conta a questão central (ou quase): a raça.

Contradições
Os obstáculos que se apresentam a uma pessoa estrangeira, além da cor da pele, no caso de Ifemelu, são a falta de documentos, o périplo interminável em busca de um emprego, preconceitos de toda ordem, casamentos de ocasião e, sobretudo, a solidão. Esse sentimento é ainda aguçado pela perda da identidade, e identidade não é algo que se obtenha de uma hora para outra. Principalmente porque a esses solitários caberá o subemprego.

Ifemelu ainda ama Obinze, e pretende esquecê-lo. Submete-se a relacionamentos que podem ser descritos como tentativas de autopunição por ter dado pouco valor a Obinze. Mas a conta parece ter chegado. Obinze, por sua vez, segue a cartilha e faz de tudo para ter sucesso profissional — o que significa ter dinheiro, se casar e não extravasar seus sentimentos.

Como ser negra num mundo de brancos? A história é comum a qualquer negro que tente viver com dignidade em sociedades racistas. O destino de Obinze é outro, a Inglaterra, e sua experiência será bem pior. Os problemas são iguais: o imigrante só tem a perder, da identidade à exclusão. Imigrante negro, bien sûr! E Obinze conhece a humilhação. Até que um dia retorna ao seu país. Ifelmelu e Obinze se reencontrarão, é claro.

A protagonista é um reservatório de contradições. Supera situações assustadoras nos Estados Unidos, mas toma decisões que espantam para longe, muito longe, qualquer possibilidade de ser feliz. Alguém capaz de deixar seu país na tentativa de vencer em uma terra estranha, ao aparentemente conseguir, decide voltar, cansada de viver apenas com a lembrança de um grande amor. Vencedora ou derrotada? Qual a necessidade de colocar nesses termos? Nenhuma. Ifemelu simplesmente acreditou que sua felicidade tem nome certo e lugar conhecido.

Americanah tem seus pontos altos. Particularmente, me agradam essas idas e vindas no tempo, mas a extensão, a lentidão, a repetição tiram seu brilho. De qualquer maneira, com uma generosa dose de boa vontade, arrisco dizer que os méritos acabam por prevalecer. Mas nada demais. Longe… bem longe disso. Nada que não se encontre em Coetzee, e que este não tenha tirado de Faulkner.

Americanah

Chimamanda Ngozi Adichie
Trad.: Julia Romeu
Companhia das Letras
516 págs.
Chimamanda Ngozi Adichie
Nasceu em Enugu, na Nigéria, em 1977. É autora dos romances, Meio sol amarelo (2008) e Hibisco roxo (2011), publicados no Brasil pela Companhia das Letras. Sua obra foi traduzida para mais de trinta línguas. Chimamanda vive entre a Nigéria e os Estados Unidos.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho