Realismo das lendas urbanas

Nos misteriosos contos de "Quebranto", a clareza de linguagem e a liberdade de criação sobressaem
André Balaio, autor de “Quebranto”
29/10/2018

“Um livro intenso e que honra a tradição das Histórias extraordinárias de Poe”, diz a escritora Micheliny Verunschk sobre Quebranto, o livro de contos de André Balaio que depõe sobre seu processo inicial de escrita. “Foi numa biblioteca, escondendo-se de fantasmas, que André encontrou, detrás de livros valiosos, uma gata preta igual ao felino de Poe, que pulou para uma mesa entre as estantes e deitou-se. André sentou a seu lado, começou a escrever e uma revolução teve início. Os fantasmas fugiram. Fantasmas não gostam de revolução.”

E basta isso para o leitor apressado sonhar com ambientes tenebrosos, escuros, tétricos, fechados. E basta isso para o leitor se remeter ao conselho de Horacio Quiroga no Decálogo do perfeito contista: “Crê num mestre — Poe, Maupassant, Kipling, Tchekhov — como na própria divindade”. André elegeu Poe como seu guia e senhor. A leitura do livro nos remete a outros vislumbres, no entanto.

Não que faltem ao livro tais ambientes tétricos, tenebrosos; tais momentos mórbidos, tais instantes inquietantes.

Da cozinha, ouve a voz. Quitéria. A espinha gela, os lábios tremem. E mais uma vez, Quitéria. Vai até a porta dos fundos e sente um vento quente, parece chama de vela. Quem está aí? Silêncio. Quem é? Ninguém responde. Em silêncio reza um Pai Nosso e abre a porta. Não há gente, sombra, vento ou alma.

Naturalmente ele fala de cemitérios, mortes, assombrações e, claro, fantasmas. Mas isso não é tudo.

O diferencial é que seus fantasmas são solares, cotidianos. Caminham pelas ruas, contam dramas, pedem justiça. Parecem homens de carne e osso, ainda presos à capacidade de sentir ódio, de se vingar, ou perdoar. A humanidade está presente nos personagens e isso os torna um ente em sua convivência com os vivos. São filhos de um lendário tão comum à cultura brasileira que tratam a morte como uma ocorrência natural, mas prenhe de dramas e tragédias.

O tratamento e o diálogo com esta dualidade dos sentimentos mais profundos e fatais vêm rendendo boa literatura há séculos. E a leitura dos contos de Quebranto nos leva a pensar no realismo mágico, hoje tão pouco em voga, mesmo tendo seu boom tão próximo de nós, na segunda metade o século passado. No entanto, é bom lembrar que Gabriel García Márquez afirmava que a primeira narrativa do realismo mágico foi escrita por Colombo em seu Diários da descoberta da América. O que fez a geração do colombiano foi renovar estas narrativas. E é o que faz André Balaio, renova uma literatura recorrente que, no caso nordestino, foi muito bem praticada por Gilberto Freyre e Carneiro Vilela.

André mora no Recife, uma cidade lendária, que sobrevive num cotidiano fantástico, pleno de fatos incríveis. Na década de 1970 foi assombrada por uma mítica perna gigantesca, a Perna Cabeluda, que corria pelas ruas de horas noturnas acabando com a corrupção, e que hoje faz muita falta. Outra assombração dos anos setenta recifenses — esta bem viva — foi Biu do Olho Verde, um marginal que torturava as pessoas com um alicate e que hoje, mesmo morto, costuma aparecer para alguns viventes notívagos. Em outros termos, os fantasmas de André, como os do Recife, são reais. Talvez em Quebranto o mistério e o terror estejam mesmo nos entes vivos, bem vivos.

Junto com um grupo de amigos, André alimenta um sítio na Internet — Recife Assombrado — onde narra essas lendas, esses mitos. Assim, nada mais natural seus contos se basearem neste ambiente tão fantástico, tão fantasmagórico quanto real. Como a contística lendária do Recife, a de André se apega aos sonhos e aos desejos de seus personagens. Muitos estão no limo da miséria, mas vislumbram paraísos, como o mendigo que se diz Primeiro Ministro de Avalon e dança o Danúbio Azul com um cachorro chamado Elvis. Pavores que são diluídos numa camada sutil de humor.

E por falar de um ambiente tão Pernambuco, tão Nordeste, André corre o risco de sofrer a inócua pecha de regionalista. A verdade é que nunca houve de fato uma literatura regionalista. Mesmo os romancistas de trinta, com sua verve socialista, com suas palavras de denúncia, tocavam, e ainda tocam, os sentimentos do mundo inteiro. Para saber disso, basta ler um belo artigo sobre Rachel de Queiroz escrito por um jovem jornalista colombiano chamado Gabriel García Márquez.

A prosa antirregionalista de Balaio tem sabor universal, portanto.

A testa de Ângela era um lago com pequenas ondas que se formam quando alguém joga uma pedra. E essa pedra quem jogou fui eu, quando disse que não ia com ela ao ponto de ônibus.

As frases iniciais do conto Noite cega e o próprio conto, em que um rapaz se envolve com uma estranha companhia que ensaia Macbeth na noite de uma praça, demonstram isso.

São textos de imaginação plena. Embora tenha seus arrimos, como Poe e as lendas recifenses, André tem uma imensa gama de criatividade que o leva a se reinventar em cada novo texto. Transita por sertões áridos e terras úmidas, amolengadas, com a mesma desenvoltura. Os cenários se desenvolvem como ponto de apoio à narrativa, posto que o autor resgata a indispensável necessidade de uma história bem contada; a indispensável necessidade daquelas narrativas que não pedem explicações, que por si só justificam o prazer da leitura.

Clareza de linguagem e liberdade de criação. Talvez nestes dois pontos resida a fortaleza de Quebranto. A delicadeza posta nas palavras escritas quebra a crueldade das narrativas, envolve o mundo tétrico com alguma poesia. É mais um contraste a realçar uma literatura forte, pujante, agradável e necessária.

 

Quebranto
André Balaio
Patuá
128 págs.
André Balaio
É escritor e roteirista. Atualmente mora no Recife (PE). Quebranto, seu primeiro livro de contos, foi finalista do Prêmio Cepe Nacional de Literatura de 2017 e do Prêmio Sesc de Literatura 2017 e terceiro colocado no Concurso Internacional UBE (RJ) 2017. O conto O lado de lá foi vencedor do prêmio Off Flip 2016.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

Rascunho