Os anos de ditadura na América Latina ainda são uma ferida mal cicatrizada. Coincidência ou não, os golpes de estado, que renderam os governos democráticos e instituíram os militares no poder, ocorrem no mesmo momento em que literatura latino-americana despontava para o mundo. Júlio Cortázar, por exemplo, publicaria O jogo da amarelinha (1963) apenas três anos antes de o presidente argentino Arturo Illia cair. O Governo Revolucionário das Forças Armadas, que vigorou no Peru de 1968 a 1980, assumiria o poder um ano antes de Mário Vargas Llosa, Nobel de Literatura em 2010, lançar Conversas na catedral.
É perceptível que as relações entre a literatura e a luta contra os governos ditatoriais são intrincadas e complexas e, sobretudo, estão em perpétua revisão. Soy loco por ti, América, livro mais recente de Javier Arancibia Contreras, revisita com ferocidade esse período nebuloso. Percorrendo caminhos pedregosos na Argentina, no Chile, no Brasil e no México, Contreras cria quatro histórias que, por meio de um labirinto narrativo, se cruzam no tempo e no espaço.
Colocando em xeque a noção de gênero literário, pois cada uma das partes do livro pode muito bem ser lida como um conto independente, Contreras tece um enredo absurdo que, não fosse a realidade dura e insípida na qual foi inspirado, parece ter saído facilmente de um texto de Gabo ou Fuentes. A primeira parte narra a vida de Diego García, um obituarista enviado para cobrir a Guerra das Malvinas (1982). Com um talento assombroso para refazer a vida dos mortos, García acaba se tornando uma peça no joguete dos senhores da guerra. A segunda parte é a história de Santiago Lazar, um jovem humilde e sem muita ambição, que, sem se dar conta, transforma-se em um poeta-pichador, colocando nos muros pensamentos que lhe vem à cabeça. De uma hora para a outra, seus textos se tornam panfletos contra o regime de Augusto Pinochet (1973–1990) e passa rapidamente a persona non grata, exilando-se em Londres após uma fuga mirabolante do navio da morte. Na capital inglesa, Lazar assume a identidade de William White, um artista premiado que tenta se esconder de seu próprio passado.
A terceira parte refaz os passos de Sérgio Vilela, um jornalista que ficou famoso por acompanhar um general-presidente durante uma viagem internacional. Ao mesmo tempo em que aquilo lhe rende prestígio e dinheiro, causa a ruptura definitiva com seus colegas de trabalho, que o leva ao fundo do poço. A sua salvação pode estar em uma matéria sensacionalista e escandalosa sobre um político brasileiro envolvido com uma seita bizarra. Por último, Javier apresenta ao leitor o milionário Marlon Müller. Com a ajuda de outros dois jovens, leva o caos à Cidade do México, desmascarando celebridades e importantes figuras públicas — gente que passava a impressão de limpeza e asseio moral, mas estava, realmente, afundada em um lamaçal.
Os personagens transitam entre as quatro histórias e criam uma espécie de quebra-cabeça narrativo, cujo ponto em comum é a mídia. Em todos os casos, Arancibia Contreras demonstra o poder, oculto ou não, de jornais, revistas, programas de tevê e, na parte final, a internet para a dominação popular.
Sem disfarces
Por meio de um olhar arguto e satírico, o escritor traça um paralelo entre ficção e realidade, algo que já havia feito em seu segundo livro, O dia em que eu deveria ter morrido (2010) — a história de um dono de jornal que deixa tudo para trás e embarca para a Turquia.
Se em Imóbile (2009), seu livro de estreia, e em O dia em que eu deveria ter morrido Contreras não faz concessão às alegorias e metáforas, Soy loco por ti, América é a realidade escarrada, digna de um habitué do jornalismo gonzo. Talvez o resultado dos anos em que trabalhou como repórter policial em São Paulo.
Comparando os três romances, uma espécie de trilogia latino-americana, se vê uma literatura sem disfarces, ágil e certeira — como um tiro. Em entrevista publicada na edição 137 do Rascunho, confessou que o romance, antes de tudo, é “uma oportunidade de não-ser, de fugir de sua realidade, se ser amoral, cruel, cínico ou mesmo infeliz e indiferente”.
Não é difícil compreender a seriedade que transmite a literatura que produz. Parece, sem dúvida, uma relação ilibada de ação e reação, causa e efeito. Por isso, seu fazer literário é composto de períodos esculpidos, concebidos por um formão exigente. Ao mesmo tempo, Contreras consegue dar certa simplicidade, como em:
O fim de uma guerra é o início de outra.
Estou no hospital sabe-se lá há quanto tempo, mas assim que abro os olhos, de alguma forma, sei que voltei para casa.
O trecho é curtíssimo, entretanto, é impossível passar imune à reflexão. Isso se explica, até certo ponto, por ser um discípulo de Camus, Melville e Mark Twain, os dois últimos descobertos durante o período em que morou no Iraque graças ao trabalho do pai.
Processo kafkiano
Contreras expõe certa obsessão pelo inconsciente e psicológico: as histórias de Soy loco por ti, América, em certa medida, exploram as profundezas das personalidades de seus personagens, se escondendo dos leitores em labirintos borgeanos. Não é à toa que García, Lazar, Vilela e Müller, cada um a seu modo, estão encurralados em um processo kafkiano — são todos, guardadas as devidas proporções, atualizações sul-americanas de Josef K.
Esse tom melancólico e cingido é uma característica narrativa do autor. O conto A febre do rato, que integra a edição especial revista Granta — que reuniu “os melhores jovens escritores brasileiros”, em 2012 —, relata a fissura de um sujeito por cocaína. De parágrafo em parágrafo, Javier Arancibia Contreras descreve o caleidoscópio de percepções de um homem frustrado e obsessivo pela droga, mas que, em simultâneo, nega precisar dela.
O mesmo acontece em seu livro mais recente, entrementes, em vez do tóxico, seus personagens são tomados por um arrebatamento pelo passado. Todos tentam, em vão, levar a vida adiante, se desvencilhando de lugares e pessoas, porém, não passam incólumes às marcas do tempo.
Vilela, por exemplo, conta que:
Naqueles anos eu tinha uma vida pra lá de boa. Fazia minhas reportagens pelo Brasil, viajava para o exterior com bastante frequência para coberturas relevantes e de repercussão (…).
Isso, claro, antes de cair em sua própria armadilha e chegar ao fundo do paço e em uma grandiosíssima espiral de silêncio. Soy loco por ti, América, ainda que seja o réquiem para países — quase sempre — em autocombustão, é um retrato duro da ambição e do egoísmo, de povos movidos pela corrupção e pela ganância, como se fosse preciso devorar o vizinho para que se possa sobreviver.