Realidade e fantasia numa Fita de Möbius

Em seus contos, Julio Cortázar revelou a insuficiência do conceito de realidade, a força dos espaços oníricos e as fissuras da linguagem
Ilustração: Julio Cortázar por Oliver Quinto
01/10/2021

“Sumamente bélico”: era assim que o argentino Julio Cortázar descrevia a ocasião do seu nascimento. Concebido enquanto as tropas alemãs avançavam sobre a Bélgica, nasceu em 26 de agosto de 1914, na embaixada argentina em Bruxelas. Depois de uma breve estadia em Barcelona, onde nasceu sua irmã, Cortázar mudou-se aos quatro anos para a Argentina.

Professor, tradutor e crítico do governo peronista, passou três décadas autoexilado em Paris — onde morreu aos 69 anos, em 1984, vítima de leucemia. Cortázar também foi marcado por sua acromegalia, doença que atinge adultos e que causa o crescimento excessivo de partes como mãos, pés e nariz, e dados recentes sugerem que o autor pode ter sido contaminado durante uma transfusão de sangue pelo vírus do HIV.

Durante sua vida, Cortázar marcou profundamente a literatura latino-americana. Ao lado de Jorge Luis Borges, tornou-se um dos mais conhecidos escritores argentinos pelo mundo: desde o sucesso de O jogo da amarelinha (1963) até as inspirações cinematográficas de Antonioni e Godard, a maneira com que Cortázar repensou a realidade modificou o cânone da literatura fantástica.

Em junho deste ano, como parte da reedição das obras do argentino, a Companhia das Letras lançou Todos os contos. As mais de mil páginas trazem coletâneas que vão desde A outra margem (1945) até Fora de hora (1982). Soma-se à edição onze contos publicados em Papeles inesperados, edição póstuma publicada pela Alfaguara em 2009, e três reflexões sobre as narrativas de Cortázar.

Apesar dos deslocamentos que a leitura de uma coletânea completa acarreta, como a unificação de diferentes propostas e períodos em uma única lombada, a edição demarca o trajeto de renovação que Cortázar faz na literatura fantástica a partir de suas narrativas breves. Em Alguns aspectos do conto, Cortázar afirma que as narrativas breves que escreveu “pertencem ao gênero chamado fantástico por falta de nome melhor”.

Parte do incômodo do escritor com a nomenclatura surge principalmente pelo momento de crise e renovação artística de representação da realidade: diversas vanguardas e movimentos procuravam desvelar uma realidade oculta, um outro nível do realismo. Em relação às narrativas argentinas, é possível ver em Jorge Luis Borges a figura de alguém que primeiro destrinchou essas relações.

Cortázar assume essa influência, como visto em uma de suas falas: “Foi Borges quem nos mostrou as possibilidades do fantástico”. Além do seu trabalho enquanto escritor de labirintos, realidades oníricas e do universo como biblioteca, Borges também foi o responsável pela estreia de Cortázar, publicando o conto Casa tomada no Los Anales de Buenos Aires, revista que dirigia à época.

Em Conto: introdução, Jaime Alazraki escreve que tanto Cortázar como Borges se dedicam à escrita de narrativas neofantásticas desviando dos “medos e horrores do fantástico puro ou tradicional”. Essa nova premissa do elemento fantástico é diferente; é uma literatura antirrealista que implica a existência de um elemento estranho tratado de maneira trivial e prosaica.

Apesar das semelhanças entre os conterrâneos, como o desenvolvimento de algumas temáticas, as narrativas de Borges e Cortázar são “marcadamente diferentes na cosmovisão, no estilo, no tratamento narrativo, até quando escrevem sobre a mesma matéria”, diz Alazraki. Em Cortázar, o fantástico faz parte do cotidiano, mas não é revelado diretamente.

Ainda no texto Alguns aspectos do conto, Cortázar declara seu ponto de partida de oposição em relação ao “falso realismo que consiste em crer que todas as coisas podem ser descritas e explicadas”, constatação feita com o “otimismo filosófico e científico do século 18, isto é, dentro de um mundo regido mais ou menos harmoniosamente por um sistema de leis, princípios, relações de causa e efeito, de psicologias definidas, de geografias bem cartografadas”.

Cortázar escreve para desmontar as premissas epistemológicas. Em seus textos, temos uma busca pela transcendência das construções culturais rumo a uma realidade verdadeira, submersa nas teias que estruturam a falsa realidade concreta. Por isso, frequentemente seus contos terminam em suspensão: nós só temos acesso a uma parte do que é dito, daquilo que cabe à interpretação limitada da mente humana e suas categorias rígidas.

Dois grandes obstáculos precisam ser superados em seu processo: o primeiro deles é a linguagem, instrumento insuficiente para transformação da humanidade. Para refletir sobre essas limitações, as vanguardas surrealistas — preocupadas em desestruturar o racionalismo e o materialismo da sociedade moderna ocidental — exerceram forte influência.

É preciso ressaltar que o surrealismo não surgia em sua escrita enquanto técnica, mas como cosmovisão: um movimento guiado para libertação das faculdades humanas; a conquista de uma realidade mais verdadeira. No entanto, Cortázar visualizava no movimento um apego à tentativa de reformar linguagens antigas, ao invés da busca por novas linguagens, e mantém-se afastado — mas sua influência permanece, como visto em diversos contos. Em Ali, mas onde, como?, por exemplo, a abertura traça um diálogo direto entre René Magritte e sua coletânea Bestiário.

Seu segundo obstáculo era a presença das categorias lógicas e dos instrumentos racionais na nossa apreensão da realidade — principalmente a questão do tempo e do espaço. Cortázar tentou ultrapassá-lo com uma constante tentativa de negação. Em um trecho de seu texto Conto: introdução, Jaime Alazraki explica de maneira sintética o funcionamento dessas visões antagonistas na narrativa de Cortázar:

Dessa tensão entre duas forças opostas — uma que nasce do plano temporal, outra que o nega; uma que esgota o espaço na geometria, outra que o transcende — deriva o que se poderia definir como a espinha dorsal de sua ficção neofantástica. Um plano apresenta a versão realista e natural dos fatos narrativos e um segundo plano transmite, com idêntica naturalidade, uma versão sobrenatural desses mesmos fatos. A narrativa se apoia com idêntica certeza tanto na dimensão histórica como na dimensão fantástica. Uma e outra proporcionam os trilhos parelhos pelos quais o relato desliza para um destino que não é nem o fantástico puro nem o histórico-realista, mas apenas um interstício por meio do qual o escritor se assoma a suas entrevisões, que, em última análise, são o verdadeiro destino para o qual o conto se encaminha.

Nessa construção, temos duas ordens em conflito, mas mescladas. Sem fissuras, a configuração realista e a fantástica se sobrepõem no plano da existência, cada uma com suas regras, e compõem um retrato completo — apesar do fato de nós, limitados pelo consciente, termos acesso a apenas um dos lados, as duas esferas não se cancelam. São narrativas que comunicam “sentidos incomunicáveis por meio das conceitualizações a que nos obrigam a linguagem e nossa compreensão lógica da realidade”, como nos diz Jaime.

Fita de Möbius
Alazraki também comenta que as narrativas trazem metáforas que buscam expressar mensagens incompatíveis com código realista. Uma dessas imagens que pode nos ajudar é a da Fita de Möbius: uma forma complexa cujo lado externo se torna o interno e vice-versa. Durante a leitura de muitos contos de Cortázar, ficamos nesse constante alternar de lados, sem um ponto de referência fixo.

Tomemos como exemplo o breve conto Continuidade dos parques. Nele, acompanhamos um homem ansioso para concluir a leitura de um romance, sentado confortavelmente em sua poltrona. A narrativa que lê conta a história de dois amantes apaixonados, mas que tramam o assassinato do cônjuge da mulher. Ao colocar o plano em prática, o romance narra a invasão do assassino no cômodo em que o homem responsável por afastar o amor dos dois está sentado em uma poltrona, concluindo a leitura de um romance.

Nem sempre a figura da ciclicidade é adotada. Muitas vezes Cortázar alterna e sobrepõe essas esferas. Em A ilha ao meio-dia, por exemplo, um comissário de bordo se apaixona por Xiros, uma ilha grega que sempre admira pela janela do avião no horário de almoço quando percorre a rota Roma-Teerã. Obcecado, o comissário pensa e pesquisa sobre a ilha o tempo todo, recusa mudanças para itinerários mais concorridos em razão da estranha atração que sente pela ilha.

Em suas férias, planeja uma viagem até o local isolado. Ao chegar em Xiros, suas expectativas são superadas e começam os preparativos para que passe o resto da vida ali. No entanto, logo ao meio-dia, ele é testemunha de um acidente: o avião da empresa em que trabalhava explode e cai no oceano. Na esperança de salvar alguém, ele nada até os destroços e agarra a primeira mão que sente. Ao retornar para o litoral, em uma obscura conclusão, o corpo do homem salvo se torna o mesmo que o do salvador.

Essa curiosidade obsessiva e repleta de manias desse protagonista, mas vista em tantos outros, nos leva ao limiar da sanidade e evidencia a realidade paralela e inacessível pela lógica e o consciente. No conto As fases de Severo, um homem repete estranhos rituais todas as noites, mas apenas em seu quarto. No conto As babas do diabo é a fotografia revelada que aparece como suporte para o desvelamento de uma nova ordem de existência.

No entanto, é frequente que essa nova ordem espelhada seja retratada no espaço do sonho e do inconsciente. Em Ali, mas onde, como? acompanhamos um homem que sonha com seu amigo Paco, morto há 31 anos. Mas a presença de Paco em seu sonho é diferente:

Qualquer um sonha com os mortos e os vê vivos, não é por isso que escrevo; se escrevo é porque sei, embora não consiga explicar o que sei. Veja, quando sonho com Alfredo, a pasta de dentes cumpre muito bem a sua tarefa; resta a melancolia, a recorrência de lembranças envelhecidas, depois o dia começa sem Alfredo. Mas com Paco é como se ele também acordasse comigo.

Paco se prende ao pijama, recusa a se dissipar no fundo da pia depois da escovação dentária e permanece ali, “à raiz da língua enquanto você esquenta o café, ali, mas onde, como?”. É a evidência de uma reflexão não apenas espacial, mas também temporal, já que revive novamente as situações que implicaram em sua doença e morte há três décadas.

Esse deslocamento temporal também é visto em Uma flor amarela. Aqui, um rapaz pensa ter descoberto que a imortalidade humana existe ao mesmo tempo em que entende a própria mortalidade. A constatação parte da certeza de que a existência de todas as pessoas é repetida ao longo do tempo: no momento em que um sujeito morre, seu duplo renasce para viver novamente suas dores e conquistas. No entanto, ao encontrar um erro na trajetória de seu destino, encontra seu duplo prematuro e passa a acompanhá-lo até o desfecho trágico, que o leva ao desespero e à mesa do bar.

Literatura como jogo
Por fim, vale ressaltar que as obsessões, manias e tiques que vemos nesses personagens que tangenciam a loucura não são só indicativos desse outro lugar inconcebível, mas apresentam a natureza lúdica da literatura de Cortázar. Talvez a obra mais famosa que traga esse espírito seja O jogo da amarelinha, em sua forma não linear e interativa, mas também vemos isso em seus contos.

Em primeiro lugar, Cortázar pensa na literatura como um jogo com o leitor. Este ator é também uma parte responsável pela leitura, é um cúmplice e antagonista fraternal que luta com o escritor no trabalho da criação. Um exemplo dessa percepção é a experiência que compartilha na ocasião de publicação de Casa tomada. Originada a partir de um pesadelo transcrito, a publicação do conto gerou múltiplas leituras — desde uma crítica peronista até o retrato da decadência de uma família incestuosa.

Além disso, Cortázar visualiza a própria construção literária enquanto jogo. Podemos pensar em Fim de jogo, uma coletânea dividida em três etapas, começando pela fase I, mais fácil, até a fase III, mais difícil. Em Manuscrito achado do lado de uma mão, um homem descobre que pode destruir a carreira de músicos apenas ao pensar em sua tia e estabelece uma brincadeira-chantagem com a carreira de músicos famosos em busca de seu sustento.

O autor também brinca com seus animais inventados, como as mancúspias do conto Cefaleia; o tigre que perambula livre pela casa em Bestiário, fazendo com que seus moradores tenham que obedecer a uma espécie de coreografia antes de mudar de cômodo; ou do homem que, ocasionalmente, vomita coelhinhos em Carta a uma senhorita em Paris.

Penso que podemos sintetizar essas ideias numa breve análise de Manuscrito achado num bolso. Aqui, um homem flerta com figuras femininas no metrô. No entanto, essa aproximação precisa obedecer a um complexo jogo: primeiro, o contato é estabelecido com o reflexo da figura feminina no espelho. Depois, o reflexo precisa perceber sua presença. A partir daí, a aproximação concreta só pode ser feita caso haja total sintonia entre o trajeto nas linhas do metrô previamente estabelecidos na mente dele e o que a mulher realiza.

Na atmosfera do conto, é claro como o metrô se torna uma metáfora para a representação labiríntica da realidade — linhas, baldeações, acasos. O jogo proposto pelo protagonista evidencia diversas camadas de existência: mulheres que vivem no reflexo, as mulheres anônimas que são origem da imagem espelhada, as mulheres concretas que ele conhece e têm passado. O espaço subterrâneo do metrô e o jogo com o que habita a superfície também se faz presente, alternando entre aquilo que está visível e o que está escondido, entre o consciente e o inconsciente.

Por fim, há aqui uma metáfora para a própria literatura. Esse estabelecimento de critérios e necessidade de organizar uma narrativa pré-concebida é próxima da metalinguagem borgeana. Preocupado em refletir sobre as maneiras com que a linguagem literária precisa enformar e restringir a realidade, Cortázar constrói uma narrativa que valoriza a percepção complexa do acaso e nos deixa preso por um fio suspenso.

Todos os contos
Julio Cortázar
Trad.: Heloisa Jahn e Josely Vianna Baptista
Companhia das Letras
1144 págs.
Julio Cortázar
Nascido na embaixada argentina em Bruxelas, na Bélgica, em 1914, modificou a literatura fantástica. Além das coletâneas de contos, também escreveu o romance O jogo da amarelinha (1963). Seu conto A autoestrada do sul foi uma das inspirações para o filme Weekend (1967), de Godard. As babas do diabo também influenciou o filme de Antonioni, Blow-up (1966).
Arthur Marchetto

É doutorando em Comunicação Social, com pesquisa sobre crítica literária na Universidade Metodista.

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