A leitura do novo romance de Whisner Fraga, Abismo poente, traz uma profunda e cansativa saudade de velhas vanguardas. De início é necessário lembrar indiscutíveis características das vanguardas, sobretudo as literárias. Elas nascem como um espírito renovador, revolucionário, quebrando regras e cânones, mas daí vem tempo e as torna também canônicas ou simplesmente, por absoluta inutilidade, as esquece numa prateleira qualquer.
No caso específico do texto de Whisner a recorrência recai sobre duas velhíssimas inquietações, o dadaísmo e o hermetismo, que o tempo mais jogou na prateleira que os transformou em cânone. E isso se deve a pequenos males de origem que impregnam tais estilos e expressões.
O dadaísmo nasceu ali pelo ano de 1916 numa Europa conflagrada, ferida pelas dores da Primeira Grande Guerra. Seus cultores elegeram o riso como ponto de apoio para olhar a situação absurda vivida então pelo mundo. Sua estética, mais ousada ainda, pregava a quebra das regras gramaticais com uma forma de se voltar à linguagem mais pura da infância. Mas veio o tempo e envelheceu a piada exigindo uma leitura mais realista para a época.
O hermetismo é filho de sucessivas releituras de conceitos químicos, mágicos, míticos e filosóficos envolvendo alquimistas, magos, deuses pagãos, coisas inalcançáveis pelo simples leitor, como eu. Literariamente falando, o termo acabou por explicar, ou pelo menos tentar, os textos que, exatamente por buscarem incontáveis fontes culturais, tornam-se quase ininteligíveis. E novamente o velho tempo danou-se a apontar os pressupostos básicos da comunicação, o diálogo entre emissor e receptor, exigindo clareza e objetividade para textos, interpretações, conceitos.
Não que estas formas de expressão tenham somente gerado obras cansativas e incompreensíveis. Filho do dadaísmo é a oralidade que marcou a prosa de Antônio Fraga. O autor, já em 1945, quebra as regras gramaticais para dar maior autenticidade ao linguajar da malandragem carioca de então. O hermetismo, por sua vez, pariu aqui, em 1952, pelas mãos de Jorge de Lima, o belíssimo e comovente Invenção de Orfeu.
Inútil e cansativa
E o que Whisner Fraga tem com toda esta barafunda? Pouco, quase nada, mas também algo substancial para entender, ou pelo menos tentar, os meandros de seu novo romance. Abismo poente renuncia às maiúsculas numa brincadeira sem qualquer sentido, ou talvez, como fizeram os concretistas, para dar uma nova visão pictórica ao texto. Mas como a literatura se apega muito ao que foi dito e à maneira como foi dito, a ação tornar-se vazia, inútil, cansativa.
Já o hermetismo vem de uma necessidade danada de revelar todas as leituras, todos os conhecimentos que o autor acumulou ao longo dos anos. À parte o pedantismo que isso acarreta, o resultado é um intricado de informações tão medonho que somente enreda e confunde o leitor. Compreende-se o debate entre culturas que o autor traz para seu texto, neste caso os desacertos de famílias libanesas vivendo no Brasil. Sinceramente, Salim Miguel e Milton Hatoum promovem o mesmo debate de maneira mais clara, objetiva, agradável.
O enredo conta as paixões e desilusões que o protagonista sofre ao longo da vida com helena (lembrando que Whisner abomina as maiúsculas). E aí tudo, ou nada, pode acontecer. Só que o autor está tão preocupado na grandiloqüência de seu texto que simplesmente esquece de narrar. O uso de instrumentos como fluxo de consciência, rememória, contradições, além do apoio constante nos fatos históricos recentes e nos costumes, estes antigos e atuais, confunde e cansa mesmo o leitor mais atento.
O lamentável disso tudo é que, ao exagerar em suas doses de arremedos revolucionários, o autor deu um tiro até mesmo na indiscutível qualidade literária de seu texto. Vejamos. O romance abre com uma frase primorosa e instigante. “encontrei no álcool um pai, desde a noite alagadiça em que as desculpas se converteram em candeias e negrumes.” No final até se sabe que foram as frustrações geradas pelos desencontros com helena que motivam o alcoolismo e tudo o mais da vida do narrador. No entanto, persiste o incômodo dos volteios exagerados.
O parágrafo em que Whisner Fraga pesca o título do romance vale ser transcrito com o exemplo de seu estilo opulento, gorduroso, barroco.
um mar latindo no barranco de suas pálpebras, helena, quando o oriente se punha no sol de suas bochechas e era um luto aplacado no assoalho de suas feições, aquele acanhado disfarce que nomeei abismo poente, porque era um trágico apego à suntuosidade dos devaneios, uma promessa de retorno, quando a cadência dos anos ralhava contra a indigesta ilusão, o líbano para sempre distante dessa sua bolorenta conformidade.
Ou seja, a intensidade com quis se dizer intelectual matou o mero narrador de uma história que até poderia ser muito boa.
Enfim Abismo poente é um desses livros que se perde pelo exagero. E ao se perder, despreza o que poderia ganhar em leituras. E por mais que o intelectual desdiga, a verdade é que desconheço quem escreva apenas para as gavetas.