Rapsódia turca

"Barreira", quarto livro de Amilcar Bettega, sustenta o rigor e a seriedade de uma obra que busca a excelência
Amilcar Bettega por Erick Carjes
01/09/2013

Um casal de turistas decide visitar Istambul. Chegam num começo de noite, tomam um trem no aeroporto que os leva a uma estação central e ali entram num táxi. O marido passa ao motorista um cartão com o endereço do hotel, que fica em Sultanahmet, num ponto do principal bairro da cidade que o mapa do Lonely Planet não detalha. Na desconfiança natural de turista, quer se certificar de que o homem conhece o endereço. O motorista balança a cabeça com convicção e repete: Sultanahmet, Sultanahmet. Relaxam. Chegam rapidamente a Sultanahmet, e Istambul começa a se revelar em toda sua exótica exuberância. Dobram uma esquina, depois outra, e mais outra, entram numa ruela, depois noutra, e noutra, saem, voltam. Quando passam pela segunda vez por um grande mercado de roupas, percebem que o motorista está perdido. Don’t panic, pensa o marido, e tenta descobrir o que se passa. O homem é lacônico: Sultanahmet. Sim, isso já sabiam. Mas e o hotel? Ele olha intrigado para o cartão e repete algo que não conseguem entender. Há um celular no carro, sugerem que ligue para o hotel e obtenha instruções de como chegar lá. Ele desdenha da sugestão, ou não a compreende, preferindo parar num ponto de táxi e perguntar a seus colegas taxistas. Volta, parecendo mais confiante, e outra vez se põem a caminho. Dobram uma esquina, depois outra, ruela após ruela, e de novo estão perdidos. O homem repete ad infinitum alguma coisa que seus ouvidos, desacostumados à língua e ao sotaque, não conseguem decifrar. Finalmente pára em outro hotel da vizinhança e vai se informar. Volta, agora muito sério, põe o carro em movimento, dobra uma esquina, outra esquina, ruela após ruela, e enfim os deixa à porta de seu destino. Na recepção, o atendente explica o que aconteceu: o motorista queria levá-los à rua Phone do cartão e não conseguia lembrar onde ficava. Era isso o que ele repetia com insistência: pône, pône, pône…

O que uma divertida aventura de viagem, dessas que os turistas colecionam para contar aos amigos, tem a ver com o rigor e a seriedade com que Amilcar Bettega costuma trabalhar suas narrativas? À primeira vista, nada. Mas se o cenário for Istambul e o enredo incluir a busca angustiada de um forasteiro por alguém que tenha ali desaparecido sem deixar rastro, lembrar da anedota faz todo o sentido. Na quinta maior cidade do mundo, e uma de suas mais belas, um endereço convencional com freqüência mostra-se inútil ao visitante. Os locais costumam se orientar em suas infinitas vielas por referências que só eles conhecem. Apesar de Istambul ser uma metrópole européia, as barreiras culturais que ela impõe a um ocidental podem ser às vezes instransponíveis.

Barreira é, muito apropriadamente, o título do novo livro de Amilcar Bettega, recém-lançado na coleção Amores Expressos, e seu primeiro romance, depois de três bem sucedidas coletâneas de contos. Bettega foi buscar sua história de amor em Istambul, onde viveu por trinta dias em 2007, e de lá voltou com muito mais do que talvez tivesse planejado trazer — ou, pelo menos, com algo diferente do esperado. A história de amor, por exemplo, que é o mote do projeto, em Barreira ficou tão diluída que acaba passando despercebida em meio a outros conflitos mais relevantes.

Regra do jogo
O romance estrutura-se em três partes. Na primeira delas, intitulada Bariyer (“barreira” em turco) e narrada em primeira pessoa, Ibrahim Erkaya é um funcionário público aposentado que, aos seis anos de idade, migrou com o pai de Istambul para o sul do Brasil, estabeleceu-se em Porto Alegre e nunca mais retornou à terra natal. Fátima, sua filha, é fotógrafa e decide viajar a Istambul atraída pelas histórias que o pai contava sobre a cidade onde nasceu. O livro abre com uma cena magnífica: Fátima, de Istambul via Skype, mostra ao pai uma janela aberta para a cidade, na tentativa de convencê-lo a ir a seu encontro. Contudo, a imagem na tela do computador é a de um retângulo preto, nada mais distante do brilho e do colorido da cidade que ela tenta mostrar. Ibrahim decide ir, mas, ao desembarcar, Fátima não o está esperando no aeroporto como haviam combinado. Em seguida, ele descobre que há dias ela não aparece na pensão onde se hospeda. Fátima desapareceu, Ibrahim precisa encontrá-la, e o desafio é hercúleo. Cada um dos cinco capítulos da primeira parte, que se estende por quase oitenta páginas, compõe-se de um único parágrafo: entre a inicial maiúscula e o ponto final, a técnica narrativa é a do monólogo interior deslocado para o pretérito e pontuado apenas por vírgulas. A forma tenta emular a exata sensação experimentada pelo personagem-narrador em sua busca pela filha sumida numa labiríntica metrópole, com esses blocos monolíticos funcionando como barreiras (não apenas metafóricas) ao leitor. Como se pode deduzir, não é uma leitura fácil. Há que se entrar no jogo proposto pelo autor e esperar que acalme a tempestade.

Na segunda parte, (Entre), o narrador em terceira pessoa está focado em Fátima. Aqui o discurso é mais ortodoxo — e, portanto, mais confortável ao leitor. O estranhamento agora fica por conta da desconstrução do tempo da narrativa: uma mesma cena é retomada diversas vezes, sempre com variações; quando o leitor pensa que a história avançou e cria expectativa sobre o que virá a seguir, ela volta no tempo para repetir a cena já vista, só que de outra forma. A intenção é a ambigüidade: trata-se de uma única cena vista de várias formas ou de várias cenas que tentam se encaixar numa igual forma? Não há como saber. Fátima ainda não sumiu e está fascinada pelo trabalho de outro fotógrafo, Ahmet, que usou as roupas das vítimas de um grande incêndio no Grande Bazar para produzir fotos artísticas. Que incêndio foi esse? A história registra vários incêndios sofridos por esse famoso ponto turístico de Istambul, mas nenhum adequado à época da narrativa. O fotógrafo poderia ser Ahmet Polat, cuja trajetória de vida é muito parecida com a da própria Fátima? O Polat real nasceu em 1978, o que também inviabiliza uma resposta conclusiva. Mas não é o tempo que importa.

Na terceira parte, Barrière, que responde pela metade final do volume e a mais bem comportada das três — ainda que não seja essa a intenção —, o narrador é Robert Bernard, francês que conhece Fátima em Istambul. Ele veio a serviço, com as despesas pagas, à cata de material para um guia turístico da cidade, mas passa os dias sem que consiga se desincumbir da tarefa, numa óbvia analogia com o processo de produção do próprio romance. Robert viveu uma tragédia familiar que também se relaciona com Istambul; em conseqüência, parte da trama está ambientada em Paris, para onde ele viaja logo no início de seu relato.

Sensações
As três partes se entrecruzam em alguns momentos, poucos mas suficientes para criar a unidade requerida pelo romance. O final, contudo, é aberto, com muitas pontas restando soltas após a última página. Bettega declarou em recente entrevista que não queria a passividade do leitor em tempo integral. Uma óbvia maneira de conseguir seu intento é chamá-lo então a completar as lacunas e fazer as costuras usando sua própria imaginação. Todavia, o autor não desejava criar um romance convencional, nem usar o artifício, já explorado algumas vezes, de tirar uma cidade de sua condição primordial de cenário para tratá-la como protagonista. O que interessa a Bettega são as sensações vividas pelos personagens em algumas circunstâncias bem específicas e que até poderiam surgir em qualquer outro lugar do mundo, mas talvez sem a mesma carga de estranheza. Sensações, eis a palavra-chave. Os fatos e seus encadeamentos lógicos, pilares de uma narrativa ortodoxa, valem em Barreira apenas pelo que provocam nos personagens. Certezas viram pó num virar de páginas. O fascínio de Fátima por Istambul tem por base uma cidade idealizada a partir das histórias do pai e muito diferente da que ela encontra. Quando Ibrahim se joga na empreitada de procurar pela filha perdida, descobre que tampouco conhece a cidade e seus segredos, e muito menos domina a língua. Para encontrar Fátima, Ibrahim precisa antes se reencontrar com o próprio passado.

Fátima, por sua vez, é uma personagem de contornos frágeis, quase etéreos, se comparada à solidez dos dois personagens masculinos entre os quais ela flutua. Ibrahim, impulsionado por sua dupla busca, e Robert, tentando sobreviver a seus dramas íntimos e familiares, são os verdadeiros protagonistas da história — e aí talvez a palavra “amor” ganhe outra dimensão, não exatamente a que sugere o tema original do projeto, mas como o motor que põe a funcionar toda a complexa estrutura.

Amilcar Bettega declarou certa vez que escrever era um ato de reflexão. Ao completar vinte anos de carreira, seu quarto livro é fruto legítimo dessa convicção. Em primeiro lugar, porque Bettega escreve sem pressa, burilando o texto com a paciência necessária para chegar ao seu melhor, e o resultado é não menos que a excelência. Na eventualidade de o leitor tropeçar em algo à primeira vista inadequado, na repetição inesperada de uma frase, numa idéia deslocada do contexto, em seguida ele vai compreender que nada ali é fruto de acaso ou descuido, mas tudo foi meticulosamente planejado, até mesmo — e principalmente — a estranheza que o autor quer provocar. Outro aspecto que sugere um processo de reflexão é a própria estrutura do romance: o leitor tem a nítida impressão de que a história que lê foi surgindo à medida que o autor a escreveu: um pensamento levou a outro, e esse a outro, e mais outro, e por fim a história despontou ao fim da trilha.

Com talento, segurança e muita paciência, Amilcar Bettega vai construindo uma sólida e vistosa carreira. De resto, ele nos ensina que pressa e quantidade não combinam com boa literatura.

LEIA O PAIOL LITERÁRIO COM AMILCAR BETTEGA.

Barreira
Amilcar Bettega
Companhia das Letras
262 págs.
Amilcar Bettega
Nasceu em São Gabriel (RS), em 1964. Formado em Engenharia Civil, é mestre em Literatura Brasileira. Publicou as coletâneas de contos O vôo da trapezista (1994), Deixe o quarto como está (2002) e Os lados do círculo (2004), este último vencedor do Prêmio Portugal Telecom de Literatura em 2005.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

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