Rapsódia nordestina

Ronaldo Correia de Brito constrói em "Rio sangue" um painel áspero do Nordeste, entre épica fragmentada e brutalidade histórica
Ronaldo Correia de Brito, autor de “Rio sangue” Foto: J. R. Duran
01/09/2025

A bela e emblemática palavra “rapsódia”, embora tenha sua origem na poesia — rapsodo, na Grécia antiga, era o recitador de poemas épicos —, é hoje mais usada pela música para nomear, segundo uma singela definição da Wikipedia, “uma composição livre que obedece a características especiais ou clássicas; é uma justaposição, de escassa unidade formal, de melodias populares e de temas conhecidos, extraídos com frequência de óperas e operetas”. A obra pode também estar associada ao folclore e ao improviso, porque a liberdade na exposição de vários motivos favorece a coletânea em contraponto a uma economia de temas própria do exercício de desenvolvimento musical: enquanto a graça da rapsódia está justamente em sua diversidade temática, a da sonata clássica, por exemplo, reside em se extrair o máximo de dois motivos contrastantes. Como se vê, são abordagens distintas, ainda que possam conviver numa mesma peça, pois as possibilidades em arte são sempre ilimitadas.

Na literatura moderna, quando se fala em rapsódia não se está fazendo referência a uma forma ou gênero específico, mas a uma característica que emula a concepção tomada da música e pode inclusive envolver a mescla de gêneros numa mesma obra. Talvez o melhor exemplo seja Macunaíma, um dos clássicos inaugurais do Modernismo em nosso país. Na busca de compor um retrato multifacetado do povo brasileiro, que contemplasse as três etnias — o branco, o negro e o índio —, o selvagem e o urbano, a língua portuguesa culta e sua variante popular falada aqui, nossas lendas e a exuberante sexualidade vigente nestes trópicos, Mário de Andrade acabou por criar, segundo ele próprio, uma “antologia do folclore brasileiro”. Por óbvio, Macunaíma é bem mais do que uma antologia de folclore, embora, em certa medida, não deixe de sê-lo.

A forma como se estrutura Rio sangue, novo romance de Ronaldo Correia de Brito, faz pensar na rapsódia, ainda que essa ideia só se consolide após percorrida boa parte do alentado volume de 320 páginas, obra de fôlego que vem rareando cada vez mais na literatura brasileira. Assim, para o leitor que goste de ter em mãos um livro mais corpulento e repleto de histórias interessantes, adiante-se aqui que Rio sangue não decepcionará.

Barbárie
Tudo começa com uma família que deixa o Norte de Portugal, enfrenta uma terrível travessia oceânica e chega a Pernambuco, num Brasil ainda colônia e submisso à Coroa portuguesa. Vêm em busca de melhores condições de vida, e aqui os esperam alguns parentes desbravadores, terra farta e sem dono, trabalho escravo e o declínio da produção de cana-de-açúcar que, alguns anos antes, chegara a ser nossa principal commodity, mas ainda um mundo de oportunidades que nem sonhavam ser possível nas parcas condições em que viviam na Europa. Ao cruzarem o Atlântico, deixando para trás o frio e a penúria, e aportarem num luxuriante e calorento Nordeste, algo se transforma naquela gente inculta, mas que se imaginava viver em outro estágio civilizatório. A moral se dilata sob efeito talvez dos ardores tropicais, pois custa a crer que um europeu, ainda mais tendo uma humilde origem campesina, não tenha ao menos sentido engulhos não só ao se deparar com o comércio de seres humanos e com a crueldade inominável imposta aos escravizados negros e indígenas originários, mas por participar ativamente daquela barbárie.

Uma carta recebida dos parentes, transcrita no início do romance, naturaliza o horror: “os nativos são preguiçosos, caçam, pescam e folgam, poucos cultivam. (…) É preciso adquirir negros, sem eles o engenho não mói. (…) Não esqueça a carta de concessão, bem guardada e protegida. O resto é por conta de Deus e da gente. A lei somos nós que criamos. O patrício Duarte Coelho deu o exemplo logo que chegou por aqui. Faz quase duzentos anos, mas ninguém esquece a façanha contra os índios caetés, num lugar chamado Igarassu. Encostou os navios num braço de mar e fez mira na aldeia dos selvagens, os canhões cheios de pedras e pregos. Dizem que morreram dois mil, mas acho que é exagero para assustar a indiada. Se escapou alguém, fugiu para os sertões. No terreno, lá no alto, mandaram edificar uma igreja, em louvor à graça alcançada.”

Dessa família portuguesa, formada por pai, mãe e três filhos, saem dois dos protagonistas do romance, os varões José e João, que aportam aqui ainda crianças e têm trajetórias antagônicas. João, o irmão mais novo, é o protótipo do malandro trambiqueiro e sedutor que acaba por se tornar um ególatra desprezível em todos os sentidos. José, o primogênito, é vítima de uma armação de João e, como castigo, acaba sendo mandado ao seminário para virar padre. Anos depois, José torna-se senhor da propriedade herdada dos pais, enquanto João vive perambulando pelo Nordeste, dispondo como bem entende de um patrimônio que não lhe pertence e desprezando a esposa, com quem se casou por puro interesse.

O episódio mais nauseante, contudo, fica por conta de José, o bom irmão, o homem justo de quem todos gostam e em quem todos confiam. O padre. Pois Padre José se enamora de Páscoa, uma índia resgatada no sertão ainda criança, uma linda menina que ele havia trazido para perto de si para evitar que sofresse algum abuso num ambiente de muito homem e nenhum respeito por jovens índias e negras que lhes servissem sexualmente. De protegida, a menina passa a objeto de um desejo pedófilo incontrolável. Não se vai aqui adiantar o que acontece, apenas registrar que a história do relacionamento do padre com Páscoa é narrada com uma crueza que a eleva à condição de uma das páginas mais repugnantes da literatura brasileira. De resto, a crueza é característica de um discurso que nunca poupa o leitor, por mais dura que seja a realidade dos

Vários afluentes
A estrutura rapsódica começa a se delinear quando histórias secundárias, muitas delas vindas da tradição dos negros e dos povos originários, vêm se agregar à trama principal. Aqui é inevitável olhar para o título do romance e imaginar um rio (sempre sangrento) e seus vários afluentes. A desconstrução de uma arquitetura que parecia no início linear alcança a ordem cronológica, que é flexibilizada até o ponto em que entra em cena um interessante exercício de metalinguagem: a narrativa chega ao tempo presente para encontrar um escritor em conversa com a prima professora sobre a inexistência de uma obra que conte a história de formação do Nordeste brasileiro e sua intenção de escrevê-la. Nesse momento, o leitor percebe que está vislumbrando os bastidores do próprio romance, algo que normalmente o autor tenta esconder ao máximo de seu público. O personagem escritor pode bem ser o próprio Ronaldo Correia de Brito ou, no mínimo, seu alter ego na concepção da obra.

Lendas, causos e histórias, muitas vezes ilustrados por rezas e versos, propiciam a visão panorâmica de um passado do qual, segundo se sugere no livro, existem poucos registros históricos e literários. Por outro lado, também na música podemos buscar uma analogia que serve para compreender uma fragilidade do romance: a forma do tema e variações. Pensando-se em termos do elemento humano, que é a matéria-prima por excelência de qualquer obra literária, todas as ricas histórias de Rio sangue, por mais diversa que seja sua origem, têm a função de mostrar quanto sofrimento e aspereza houve na formação daquela parte do Brasil. Qualquer momento de alívio é sempre arrematado por um golpe, uma violência, um crime, e esse movimento acaba por redundar em certo enfado ao leitor. É como ler várias vezes a mesma trama, mudando apenas a roupagem.

Também se nota uma dicotomia na tentativa de dividir o mundo entre bons e maus, sem maior atenção às nuances da condição humana nem às diferentes etnias envolvidas. Há honrosas exceções, contudo, como a do personagem José, esse sim um ser humano completo em seus conflitos e contradições.
Se, por um lado, falta a Rio sangue o elemento épico da rapsódia original, por outro sobra nele uma dicção nordestina que, como está belamente retratado no romance, foi construída num longo e duro processo em que os mais fracos tiveram a chance de contar seu lado da história.

Rio sangue
Ronaldo Correia de Brito
Alfaguara
320 págs.
Ronaldo Correia de Brito
Nasceu no Ceará e há muitos anos está radicado em Recife (PE). Médico de formação, também é dramaturgo e escritor. Entre suas obras, destacam-se os romances Galileia (vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura), Estive lá fora e Dora sem véu, além das coletâneas de contos Faca e O amor das sombras.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

Rascunho