🔓 Rajadas de vento

Em "A rua", Ann Petry apresenta as assombrosas consequências das tensões raciais nos Estados Unidos
Ann Petry, autora de “A rua”
01/03/2023

O potencial transgressor da literatura — o que torna a arte capaz de desafiar a repressão — é materializado em A rua. O romance de Ann Petry foi o primeiro livro publicado por uma autora negra a bater a marca de 1 milhão de exemplares vendidos nos Estados Unidos. A publicação aconteceu em 1946, em meio à segregação racial que ainda imperava em grande parte do país.

A protagonista, Lutie Johnson, só se sente humana no Harlem. No bairro, ela está a salvo da hostilidade das pessoas brancas. O território oferece um local seguro do olhar incriminador do mundo branco, conforme percebido por Lutie, mas também representa uma gama de adversidades para a personagem, além de uma clausura para as suas ambições de ascensão social.

Localizado em Manhattan, o Harlem é historicamente vinculado à cultura afro-americana. Na narrativa de Petry, a desolação da vizinhança é explicada pelos efeitos da Grande Depressão, na qual os negros foram os maiores afetados pelas restrições econômicas. Anteriormente, o Harlem foi referência no acolhimento de afro-americanos que deixavam o Sul dos Estados Unidos, visando fugir da segregação, que agia com mais brutalidade na região.

Petry demonstra como a hegemonia branca via no bairro uma nova oportunidade de segregação, restringindo ali as manifestações da cultura e a própria existência de pessoas negras, de modo que Lutie expressa o desconforto fora da localidade, devido à recriminação dos brancos por sua simples presença.

Mas o Harlem — ponto central do romance — foi apropriado pelos afro-americanos como símbolo de resistência. A partir da década de 1920, o local torna-se o centro cultural de um grupo de artistas e intelectuais de vanguarda, engajados com as problemáticas raciais e com a reconsideração formal e estética. O movimento, conhecido como a Renascença do Harlem, deu novos contornos ao modernismo norte-americano. Entre eles, estavam nomes como Langston Hughes, W. E. B Du Bois e Zora Neale Hurston. Muitos dos principais expoentes da Renascença do Harlem também eram envolvidos com a corrente de pensamento batizada de New Negro — Novo Negro — cujos integrantes defendiam a recusa das Leis Jim Crow, de segregação racial.

É na herança histórica deste cenário ambíguo, entre a repressão e a resistência, que a trajetória de Lutie Johnson e de seus vizinhos é contada. Com o marido enfrentando dificuldades para conseguir trabalho, no cenário pós-Depressão em que homens negros foram os principais afetados pelo desemprego, Lutie é obrigada a aceitar o cargo de empregada na casa de uma abastada família, deixando o esposo e o filho.

Antes disso, a família abriga órfãos para receber auxílios do governo, mas a presença do pai de Lutie, alcoólatra incorrigível, faz o casal perder esta renda. O casamento se despedaça devido à distância e a protagonista sente o peso da solidão da mulher negra, termo que se popularizou nas últimas décadas dentro do feminismo interseccional.

Descrição fantasmagórica
Na rua que dá título ao livro, somos apresentados a Lutie, que caminha com dignidade em meio à forte ventania do Harlem. Em busca de um apartamento que possa bancar para viver com o filho, ela acaba em um prédio decadente na 116th Street. A descrição fantasmagórica da rua e de seus habitantes beira o estilo gótico americano, profundamente enraizado na literatura do país.

Caracterizada como bela, virtuosa e digna, Lutie é, por excelência, como as heroínas dos romances ingleses dos séculos 18 e 19. Ela enfrenta uma série de intempéries devido à sua situação vulnerável, e é ameaçada por personagens inescrupulosos e forças sociais. Não é um exagero apontar que os grandes antagonistas do romance são o capital e a hegemonia branca.

Na década de 1940, quando A rua surgiu pela primeira vez, as letras norte-americanas estavam inundadas pelo solipsismo — ou seja, a crença de que a única realidade existente é aquela do indivíduo que a percebe. Isso impactou, nas obras do período, em uma maior exploração da interioridade das personagens. Por outro lado, o caráter social desta literatura permaneceu oculta para grande parte dos críticos. Contudo, dificilmente a denúncia do racismo e de problemáticas de classe, mostradas por Petry, passam impunes ao leitor contemporâneo.

Nesse sentido, a estória de A rua é contada por um narrador impessoal, com acesso aos pensamentos íntimos do elenco do romance. Um grande acerto de Ann Petry reside na exploração dessa interioridade, que ora coloca a ótica dessas personas como uma lente para o leitor, refletindo as suas psiques, ora emprega o realismo cru e objetivo.

O prédio é um mosaico de indivíduos que lutam contra o desajuste social. Lutie se ressente do mundo dos brancos, que a relegou um local de privações como a 116th Street. Seu filho, Bub, lida com a solidão enquanto a mãe trabalha. O zelador Jones nutre uma obsessão pela protagonista, a ponto de tentar atacá-la, e alimenta planos de vingança após a rejeição. A mulher de Jones, Min, luta para não ser expulsa pelo marido violento, a ponto de procurar um curandeiro. Por último, temos a sra. Hedges, que administra um prostíbulo enquanto se debate com as cicatrizes de um incêndio, do qual foi a única sobrevivente. Com frequência, ela convida Lutie para trabalhar em seu bordel.

Calvário
Dois personagens representam o calvário das esperanças de Lutie. Ainda iludida pela possibilidade de ascensão social, dentro da lógica meritocrática que aprendeu com os patrões, ela se anima quando o músico Boots Smith a convida para cantar com sua banda. Porém, a oportunidade esconde as intenções sexuais de Boots e de Junto, homem branco que enriqueceu no Harlem. Lutie resiste ao interesse dos homens em explorá-la, mesmo que esta seja a sua única oportunidade de deixar a 116th Street.

As implacáveis rajadas de vento do Harlem são um símbolo da animosidade da rua, mas também de transformação. Esta, contudo, é desoladora. É doloroso ver o despedaçar das esperanças de Lutie, ainda que sua tragédia seja anunciada. Se na abertura da narrativa ela busca conquistar a sua independência; ao fim, ela se percebe condenada a 116th Street. Em sua visão, há muitos algozes: os brancos, os homens que a desejam, as mulheres que a invejam — todos sintetizados pela rua. Nesse sentido, a queda de Lutie se assemelha ao senso trágico experimentado por muitas das personagens de Toni Morrison, primeira escritora negra laureada com o Nobel.

Lutie revida às opressões com um ato de violência. A construção da narrativa de Petry traz ecos de De passagem (1929), romance da escritora afro-americana Nella Larsen, também ambientado no Harlem. O livro foi recentemente editado pela Penguin-Companhia. No fim da trama, Irene Redfield — outrora uma mulher exemplar, assim como Lutie — é tomada por sua própria revolta, em movimento semelhante ao da protagonista de Petry.

Em A rua, Ann Petry apresenta as assombrosas consequências das tensões raciais, por meio da representação da degradante 116th Street — símbolo das aflições de Lutie Johnson. O futuro luminoso projetado pela protagonista, longe das armadilhas da rua, é enterrado pela hegemonia branca e pelo machismo. Com o desfecho da narrativa, a tragédia de Lutie está completa. Mas a trajetória de Ann Petry e de seu romance, que continua a sensibilizar mais de um milhão de leitores, demonstra o potencial desafiador da literatura.

A rua
Ann Petry
Trad.: Cecília Floresta
Carambaia
352 págs.
Ann Petry
Nasceu no estado de Connecticut (Estados Unidos), em 1908. Foi escritora e jornalista. Em 1946, o seu primeiro romance, A rua, é publicado. O livro foi o primeiro publicado por uma autora negra a vender mais de um milhão de cópias nos Estados Unidos. Morreu, aos 88 anos, em 1997.
Giovana Proença

É pesquisadora na área de Teoria Literária da USP.

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