Raízes extraviadas

No romance "Herança", Miguel Bonnefoy constrói uma narrativa que acompanha vários personagens ao longo de um século de história entre França e Chile
Miguel Bonnefoy, autor de “Herança”
01/11/2021

“Naquele instante, o homem que deixou os vinhedos do Jura foi rebatizado Lonsonier e nasceu pela segunda vez em 21 de maio, dia de sua chegada ao Chile.” A frase sintetiza o modo como a linhagem chilena da família que protagoniza Herança se constrói a partir de um tropeço da linguagem. Um humilde camponês francês, desesperado pela praga que se abatera sobre seu vinhedo, abandona as terras de propriedade familiar e embarca em direção às Américas. Com pouco dinheiro e um ramo de videira no bolso, acaba aportando por acaso no Chile, acometido de uma febre tifoide contraída no navio. Sem falar uma só palavra do idioma local, tem dificuldade de responder às perguntas na aduana, e recebe do agente de imigração um nome cuja sonoridade ecoa seu lugar de origem — Lons-le-Saunier.

Esse renascimento a partir da linguagem dá início ao romance do franco-venezuelano Bonnefoy. Nele, acompanhamos a trajetória de quatro gerações de um clã. A muda da planta trazida pelo viajante é metáfora da vida em movimento narrada com habilidade pelo escritor, que se filia ao gênero das sagas familiares. Livremente inspirados na família paterna, os dez capítulos da narrativa se intitulam com os nomes dos principais personagens, sinalizando a evocação de linhagens e o entrecruzamento desses sujeitos, em uma galeria de tipos que atravessarão um século de história entre França e Chile. Dentre eles, o patriarca Lonsonier, seu filho Lazare, a mulher Thérèse e a filha Margot, além do bisneto Ilario Da.

Lazare, anos depois da chegada do pai, parte para a França com os dois irmãos para lutar nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Só ele retorna vivo e com a saúde precária, acompanhado de uma culpa que perdurará por anos — ele havia traído o segredo que lhe fora confiado pelo soldado Helmut Drichmann, morto no campo de batalha. Ao regressar, casa-se com Thérèse, mulher de personalidade guerreira e dedicada à ornitologia. Pássaros, voos e distâncias percorridas ecoam ao longo de todo o texto. No futuro, sua filha Margot será uma dedicada pilota de avião, e a França surge novamente como destino, de onde retorna amargurada ao país de adoção. Nele, terá seu único filho, Ilario Da, fruto da relação inusitada com o fantasma que aflige a memória de seu pai.

Real maravilhoso
Na leitura do romance a imprensa francesa destacou a presença do realismo mágico de origem sul-americana. Juan Rulfo, García Márquez e Isabel Allende foram autores apontados como possível diálogo com essa matriz literária, dada a presença de acontecimentos sobrenaturais no texto — a exemplo do soldado alemão, que volta da morte para viver entre os Lonsonier. Aqui seria preferível ecoar o pensamento do escritor cubano Alejo Carpentier, que em seus postulados pensa o cotidiano americano como naturalmente insólito, ao indagar o que seria a história da América toda senão uma crônica do real maravilhoso.

A porosidade entre realidade e irrealidade fundamenta vários dos acontecimentos que permeiam a narrativa, a exemplo da relação de Margot com o espectro do combatente. Dela nascerá Ilario Da, o revolucionário da família — possível metáfora para a culpa que se multiplica no sangue dos Lonsonier, se prolongando através das gerações. Integrante do MIR, movimento de extrema esquerda, Ilario é preso durante a ditadura de Pinochet e torturado violentamente em uma vila militar. Bisneto do primeiro viajante, esse personagem fará o caminho invertido de seu antepassado, chegando à França nos anos 1970 para fugir da ditadura e da opressão. Vale ressaltar que toda a parte final do romance se agiganta neste momento de leitura, diante da importância de confrontar um passado que insiste em retornar, tanto em discursos celebratórios de figuras ligadas à ditadura no Brasil quanto naqueles que insistem em minimizar as torturas acontecidas — a imagem dos delicados pássaros do viveiro abatidos por milhares de tiros dos soldados de Pinochet permanece como alegoria da barbárie evocada no relato.

Recepção latino-americana
Por outro lado, importa avaliar a recepção desse tipo de romance entre os leitores latino-americanos. No caso brasileiro, a questão se agudiza, ao ficarem por vezes evidentes traços de uma renitente mirada etnocêntrica. A despeito da bem-vinda celebração do deslocamento e das insuspeitadas reconfigurações culturais advindas dos trânsitos, persiste uma visão hierarquizante, em que a cultura francesa chega aos trópicos com a notável missão de civilizar os selvagens. Exemplo disso é o capítulo sobre a chegada ao Chile do músico francês Étienne Lamarthe. Munido de instrumentos e de uma vontade férrea de trazer música ao lugarejo em que se instala, passa a ensaiar com a população local um repertório simples, e assim “foi oferecido àquele povo ribeirinho e montanhês um concerto de música barroca”, executado por uma gente “que não saberia sequer situar Roma num mapa-múndi”. Mais eloquente, impossível.

Em entrevistas, o autor reforça a necessidade de pensar que, em outra época, os franceses é que migraram, tendo sido bem recebidos em países distantes, refazendo suas vidas. Bonnefoy tem razão ao avaliar hoje a complexa dinâmica das migrações forçadas pela fome, a guerra e toda sorte de perseguições. No entanto, se a ideia é pensar essa dialética pela perspectiva de abertura ao outro e de acolhimento à diferença, vale indagar por que um romance francês narrando uma saga familiar em direção aos trópicos insiste em repisar lugares comuns que não cabem mais em um olhar contemporâneo — o saber dos povos originários da América, simbolizado pelo curandeiro mapuche Aukan, alimenta o imaginário de Ilario Da, mas sua figura xamânica é sinônimo de superstição e atraso. De algum modo, a cultura francesa segue atrelada a uma suposta civilização e o saber local vinculado ao exotismo, desejável somente na medida em que confere cor local à trama.

Condição do exílio
O caminho do meio pode estar em uma reflexão crítica sobre a condição do exílio. Como formula o intelectual palestino Edward Said, o exílio é uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal. Apesar dessa condição terrível de se experimentar, ele é transformado em um tema vigoroso da cultura moderna. Nessa contingência, os seres deslocados sabem que as pátrias são provisórias e sua visão será sempre peculiar, porque os exilados sempre terão a consciência de mais de uma cultura, o que estabelece uma visão em contraponto. Talvez resida aí a beleza dessas heranças, a de desestabilizar visões homogêneas de mundo, trazendo outros olhares. Como o hábito de Lazare Lonsonier de folhear jornais franceses, que chegavam com dois meses de atraso ao Chile. Esse descompasso nos fala de raízes extraviadas, da impossibilidade de alcançar a plena sintonia — o tempo do país de chegada é distinto, com sua peculiaridade e potência. O jornal não é o mesmo, o leitor já é outro.

Como toda herança, essa deve também ser ressignificada, para que não resulte em entrave para os descendentes, como um mal-entendido na aclimatação do sobrenome. Legados se destinam a uma reapropriação, e assim a videira pode florescer novamente em terra estranha, agora sob outro nome.

Herança
Miguel Bonnefoy
Trad.: Arnaldo Bloch
Vestígio
190 págs.
Miguel Bonnefoy
Filho de pai chileno e mãe venezuelana, nasceu em Paris, em 1986. Publicou os romances Le voyage d’Octavio (2015) e Sucre noir (2017), traduzidos em vários idiomas.
Stefania Chiarelli
 É doutora em Estudos de Literatura pela PUC-Rio e professora associada de Literatura Brasileira na UFF. Publicou o ensaio Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum e coorganizou coletâneas sobre literatura brasileira contemporânea. Sua publicação mais recente é Partilhar a língua – leituras do contemporâneo (7Letras, 2022).
Rascunho