Se uma árvore cai na floresta e ninguém está perto para ouvir, ela faz barulho? Há três séculos, essa pergunta traz em si uma inquietação para qual o ser humano espera para sempre a resposta. Atribuída ao filósofo irlandês George Berkeley, a frase tem sido mote para experimentos que vão da filosofia à matemática, explorando possibilidades que se orientam pela percepção e pela observação da realidade. Em 2021, uma reportagem da BBC levou a questão para o campo da neurociência. Entre análises sobre estímulos cerebrais e ilusões de ótica, a certa altura da publicação o especialista em psicoacústica Stefan Bleeck aborda a relação entre a física e a subjetividade para explicar a maneira da mente capturar frequências do mundo exterior. Diz ele: “Se a árvore cai na floresta, o que ela produz é uma onda de partículas que vibram no ar. Se não há ninguém para escutar, não há som, mas isso não significa que não haja ondas sonoras ou acústicas que têm um efeito no meio ambiente”.
Quando as árvores morrem, romance de estreia de Tatiana Lazzarotto, situa as soluções de seu enredo no escopo deste raciocínio. A experiência do luto de sua personagem-narradora, vivida no confinado de uma história mental, nunca é vozeada, embora a repercussão da perda tenha um impacto notável entre aqueles que a cercam. Do mesmo modo, a estrutura estreita, por conta da articulação de uma narrativa monotemática, encontra saídas para o esgotamento da premissa na reverberação de episódios que não estão no presente da queda. São recortes de um tempo que antecede o fim, quando não havia sinais de que a árvore iria cair.
A árvore, neste caso, é o pai da autora. Talado de forma repentina, o impacto que se ouve é o do processo de tradução desse demolimento num relato de pêsames, num testemunho catártico de quem bota para fora emoções guardadas. A narrativa, porém, não se agarra ao real biográfico, interpretando o rito da despedida através de uma escrita regida por uma poética de sentimento centrada na contínua analogia entre homem e natureza. A figura paterna simboliza a árvore-matriz da família, cuja estabilidade se atrela ao viço de uma árvore do quintal que lhe é como de estimação. Ambos existem para ser totens de resistência às intempéries e coexistem pelo encargo de proteção. O retorno da filha ocorre quando nenhum dos dois consegue mais cumprir essas funções: um está morto e o outro está condenado.
Sobra à personagem, portanto, decifrar a substância difusa das partículas que vibram no ar, a transgressão do silêncio da floresta em decorrência do baque da morte. O reencontro com a cidade da qual nunca se sentiu pertencente; com a mãe, os irmãos e a antiga casa que abriga lembranças que, agora adulta, com o vazio que não é mais o dela no retrato de família, são ressignificadas da perspectiva infantil. Enquanto descreve sua participação nas formalidades que concernem ao funeral, vislumbres do passado acendem trechos que remontam a história do pai, permitindo enxergar detalhes que passavam invisíveis ao olhar fascinado de criança. Sobretudo tratando-se de um homem que se dedicou a ser o mais conhecido Papai Noel do Brasil. A revisão do imaginário de dezembros repletos de cartinhas e brinquedos, da barba farta e descolorida, desvela certas suspeitas e condutas contraditórias. Voltar não é lidar com o que ficou, mas com que se acreditou que era. Há raízes que são mais profundas do que aparentavam suas árvores.
Um dilema
Neste sentido, permanecer na casa torna-se escavar o solo da memória na busca por sentidos soterrados, resíduos que levam ao aprendizado sobre si na decodificação desses momentos revividos. A memorabilia se converte num meio linguístico para transfundir, no plasma do discurso, as chaves de acesso a dupla vivência entre o mundo interior e aquele sestrado pelo curso cotidiano dos fatos. Como escapar do esmagador da ausência de alguém cujos vestígios estão em toda parte? O que fazer com os pertences de quem se foi? A fuga de respostas invariavelmente leva a descobertas e, remexendo numa velha cômoda entulhada de quinquilharias, salta da gaveta uma carta que contém três tarefas dirigidas à filha distante, com o pedido final de mantê-las secretas para os outros integrantes da família. Um dilema que se apresenta sem possibilidade de contestação de seu feitor, do homem-árvore ciente de que iria cair e escolheu quem deveria estar por perto para ouvir o barulho.
Lazzarotto filia sua narrativa a uma linhagem de livros que partem da manifestação do luto para compor um relato que mistura tributo e elegia. A linguagem altamente sensível aposta num lirismo que, se por um lado serve para traduzir percepções e estados emocionais, por outro se compromete a criar uma espécie de idioma próprio pelo qual a constituição das árvores fomenta toda sorte de analogias. Um risco para o desastre da caricatura e do melodrama, que a autora consegue escapar com boa técnica e uma verdade que transparece mesmo nos chavões deste tipo de temática. Outro acerto está na organicidade entre imaginação e empréstimo de passagens do vivido, tornando os personagens e seus conflitos críveis e com amplo poder de engajamento. O leitor nunca se dispersa em ilações sobre a fronteira entre realidade e ficção, ainda que aspectos da história tenham um tanto de inusitado; ou mesmo por isso, quando perder um pai é entender finalmente que o Papai Noel não existe.
Quando as árvores morrem, muito além de um ataviado estilo de escrita, é um testemunho sincero de uma filha que, ao tentar expressar o indizível, transforma palavras em símbolos, acionando sentidos que não poderiam ser expressados de outro modo. O revérbero de uma perda é diferente em cada pessoa, ainda que seu acontecimento mudará para sempre o ambiente de alguma forma. “Fica mais fácil aceitar a morte se desprezarmos que existe o antes e existe o depois, porque o depois é irreversível”, conclui a narradora. Em alguns casos, quando uma árvore cai não há tempo de produzir som, pois ela segue caindo infinitamente.