Questão de cidadania

É necessário estabelecer uma política pública sistemática para a cultura no Brasil
Felipe José Lindoso, autor de “O Brasil pode ser um país de leitores?”
01/02/2008

Políticas públicas interferem, e muito, com o trabalho dos escritores. A sua existência ou não condiciona muitos aspectos da criação e também a fruição dos leitores. Como o tema se presta a muitos mal-entendidos é importante ter clareza sobre o que constitui uma “política pública”.

Uma política pública de Estado — não apenas sujeita às conjunturas e projetos de cada governo em particular — tem necessariamente uma série de características:

• Deve ser impessoal e obedecer a critérios de moralidade. Ou seja, não pode induzir ou favorecer benefícios de maneira personalizada, deve ter como objetivo a atenção às necessidades da cidadania.

• Deve ter continuidade. Uma política pública é diferente de um projeto específico. Um exemplo na área do livro é o do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que existe desde a década de 80, com recursos provenientes do salário-educação e acréscimos orçamentários. Um projeto, por sua vez, tem começo, meio e fim definidos, embora no contexto de uma política pública específica;

• Deve ser avaliado e aperfeiçoado continuadamente. Para isso, deve dispor de mecanismos de avaliação e controle (como estão sendo aplicados os recursos, quais os resultados alcançados, como estes se relacionam com os objetivos a curto, médio e longo prazo a serem atingidos, etc.). Por isso, as políticas públicas devem desenvolver meios estatísticos e qualitativos de avaliação, adaptados ao objeto. Quando se divulgam os dados dos censos escolares, as avaliações do desempenho escolar, etc., esses dados constituem medidas objetivas dos resultados das políticas para a educação, com parâmetros para que se verifique o que mudou para melhor ou para pior em um período.

• Devem se constituir em um “sistema”. Em um país com as dimensões do Brasil e com a nossa organização política, as políticas públicas devem se constituir com a participação da União, dos Estados e dos municípios com obrigações recíprocas e especificadas. Assim, para ficarmos ainda na área da educação, os recursos do Fundeb — federais — são repassados aos Estados e municípios — sempre e quando estes cumpram com determinadas obrigações financeiras e administrativas e prestem conta do recebido. Quando os recursos são transferidos fora de um sistema de políticas públicas viram favor, não são controlados de maneira eficaz e seus efeitos se diluem ou são inexistentes.

• As políticas públicas devem estar voltadas particularmente para facilitar o acesso da cidadania aos serviços financiados pelo Estado. Mais uma vez, o exemplo da educação, que tem como objetivo constitucional proporcionar aos cidadãos uma educação pública universal e de qualidade. Isso define o conteúdo do que o MEC deve fazer.

• As políticas públicas devem dispor de mecanismos burocráticos para sua execução. O Estado é um corpus organizado. Se não houver responsabilidades atribuídas, a coisa simplesmente não é feita. Ou, na melhor das hipóteses, não é feita como política pública. Essa é a concepção de burocracia que Max Weber define como eficaz em “Economia e Sociedade”: é o corpo de funcionários que cumpre a lei para alcançar os objetivos das políticas públicas e efetivar o papel do Estado na sociedade (e não é culpa do pobre Weber se as burocracias se autonomizam, hipertrofiam, distorcem a lei e se colocam a serviço de segmentos — essa é a burocracia “burocrática” que foge ao controle da própria sociedade).

Embriões
Considerando essas características pode-se dizer que não existe política pública sistemática para a cultura no Brasil. Existem projetos — alguns relevantes — e a legislação de Incentivos Fiscais (Lei Rouanet), além de legislação específica para o cinema. Há também embriões de políticas públicas em órgãos afiliados ao Ministério da Cultura (MinC). E outras iniciativas atuais do MinC poderiam se transformar em políticas públicas.

Por que a Lei Rouanet não pode se caracterizar efetivamente como uma política pública?

A primeira característica das políticas públicas está presente na Lei Rouanet: a impessoalidade. Dentre os critérios estabelecidos pela própria lei (limites de isenções, quem pode se beneficiar delas, etc.) o artigo que proíbe a valorização do conteúdo dos projetos é crucial, pois veda a apreciação subjetiva da “qualidade” desses projetos. Isso é importante porque evita o arbítrio da autoridade. Eu posso não gostar dos livros do Paulo Coelho, mas a Academia Brasileira de Letras o considera um escritor de respeito. Posso achar irrelevante o filme feito a partir do livro da Bruna Surfistinha, mas um filme é um produto cultural, sempre.

A definição da “qualidade” em qualquer área da cultura é sinônimo de polêmica. A polêmica existe porque são variadas as formações, as trajetórias, as necessidades espirituais e culturais de cada pessoa. E a Constituição Federal garante a todos a livre manifestação de suas idéias, crenças e pensamentos.

Por essas razões a Lei Rouanet está correta em vedar a apreciação do MinC sobre a “qualidade” dos projetos culturais.

Mas, fora isso, a Lei Rouanet simplesmente privatiza o incentivo à cultura; seus mecanismos de avaliação são imperfeitos, por genéricos e pela falta de pessoal para avaliar até mesmo a execução financeira dos projetos; não se constitui em sistema, é um simples repasse de recursos públicos, não exige contrapartidas na maioria dos casos.

Os recursos das loterias destinados ao Fundo Nacional de Cultura (que é um instrumento da Lei Rouanet) são usados discricionariamente pelo Gabinete do Ministro da Cultura e seu repasse serve de pretexto para que a Fazenda e o Planejamento contingenciem verbas orçamentárias.

O “projeto estrela” mais recente do MinC, embora interessante, também não alcança os padrões necessários para ser caracterizado como política pública. São os “pontos de cultura”. Por seu caráter genérico, o projeto não deixa claro quais os critérios de impessoalidade — não se sabe exatamente o que faz um “ponto de cultura” ser aprovado ou não; não existe nenhum mecanismo de avaliação sistemática — e os “pontos” não podem ser avaliados e muito menos aperfeiçoados — e por isso o projeto corre o risco de se transformar em um desperdício de recursos públicos; não há garantia de continuidade.

Por último — e não menos importante — o projeto dos “Pontos de Cultura” não se constitui em “sistema”: não existe, em sua execução, definição das responsabilidades quanto às contrapartidas a serem obedecidas pelos Estados e Municípios, e muito menos pelas entidades beneficiadas com recursos públicos.

Todos os “projetos” dos Pontos de Cultura têm como premissa algum tipo de serviço a ser prestado. Mas essa premissa não dispõe de nenhuma forma de avaliação para que se verifique se os serviços foram efetivamente prestados, qual é sua qualidade, quais os problemas que podem — e devem — ser modificados para que os Pontos de Cultura se transformem efetivamente em uma política pública com as características teoricamente descritas no programa, e que possam ser controlados e aperfeiçoados.

(Se porventura estão sendo previstos e planejados os modos de superar esses problemas — o que seria a condição para que os “Pontos de Cultura” se transformem em uma política pública digna desse nome — tais iniciativas nunca aparecem no noticiário). Por essas razões deve-se concluir que os “Pontos de Cultura” são uma boa idéia, mas ainda não se constituem como modelo de política pública.

Aperfeiçoamento
A construção de uma política pública conseqüente e eficiente para a cultura não nasce da noite para o dia e exige o constante aperfeiçoamento. O grande problema que enfrentamos hoje é que, aos cinco anos de governo do presidente Lula, o que podemos contabilizar são muitas iniciativas e projetos, mas não a formulação e a aplicação sistemática de uma política pública.

Um dos objetivos anunciados logo no começo da administração Gilberto Gil no MinC foi a reformulação da Lei Rouanet.

Nos primeiros meses do governo o anúncio atabalhoado da exigência de uma “contrapartida social” foi detonado espetacularmente, sobretudo pelo pessoal do cinema, que habilmente ressuscitou o espectro do “patrulhamento ideológico”. Detonada a “contrapartida social” não se voltou mais a falar na modificação da legislação.

O que possibilitou esse tipo de reação foi precisamente o enfoque do MinC na questão da produção dos bens culturais e não do seu acesso. A grande modificação possível e necessária na legislação de incentivos fiscais é torná-la um mecanismo de apoio ao acesso da população aos bens culturais. Então, gerando mercado, cria condições para a remuneração dos criadores de todos os tipos de produtos culturais, sem necessidade nenhuma de “contrapartidas sociais”.

Se a lei restringisse os incentivos para a publicação de livros que são na maioria brindes das grandes empresas, e se houvesse, em vez disso, uma indução efetiva para a formação de bibliotecas públicas, aumentaria o consumo de livros. Mas essa medida por si só não bastaria para democratizar o acesso ao livro. A escolha dos acervos teria que deixar de estar nas mãos dos ditos “especialistas” e abrir espaço para que o público leitor solicitasse os livros que desejasse ler. E que os bibliotecários fossem induzidos a estar atentos à produção local.

A partir dessa demanda — a das bibliotecas de bairro e comunitárias — os livros de pequenas editoras — e os publicados pelos autores — teriam espaço nas compras. Se não for assim, podem ter certeza de que na medida em que comissões de “sábios” escolham os acervos, não vai haver espaço para esse tipo de livros — salvo as proverbiais exceções.

Abertas essas possibilidades de incentivo às bibliotecas é que se pode pensar de maneira eficaz na circulação dos autores para o contato com seus leitores. É possível imaginar meios democráticos e abrangentes para isso. Não é fácil, entretanto.

Vejamos um exemplo hipotético.

O Brasil tem quase 6 mil municípios. Em princípio, todos deveriam ter o direito de receber visitas de autores. E que autores?

Uma fórmula possível:

• Definição dos recursos. Digamos, por exemplo, que sejam R$ 100 mil por ano de recursos federais.

• O MinC lança dois editais. O primeiro para os municípios que queiram participar do programa, com condições: receber os autores garantindo-lhes a hospedagem em padrão de acordo com o porte da cidade e alimentação; a infra-estrutura para o encontro entre os autores e o público; o pagamento de cachê também pré-definido para cada autor. O segundo edital do MinC seria dirigido aos autores. Abriria inscrições para quem quisesse participar do programa, nas condições estabelecidas. O autor iria para o município que o selecionasse, receberia o cachê para participar do evento. O governo federal pagaria a passagem.

• Na etapa seguinte, o MinC divulga o resultado das inscrições. Digamos, hipoteticamente, que 500 municípios se disponham a desenvolver programas naquele ano e que 300 autores se inscrevam. O dinheiro não vai dar para atender tudo isso. O critério para a definição de quem vai para onde pode ser simples: a ordem é a da escolha do autor e da programação pelos municípios inscritos — quem for mais ágil sai na frente. O autor que não topar ir para o município que o escolheu fica fora do programa no próximo ano. O município que não cumprir o prometido, também. E os recursos vão sendo gastos nessa ordem, até acabar. E se os municípios do extremo norte quiserem a visita de escritores gaúchos, por exemplo, a grana acaba mais rápida. Ou vice-versa.

Dá para se perceber a dificuldade logística de montar um programa desse tipo. Mas discriminar municípios ou autores, seja lá por que razão, seria descumprir o pacto federativo. Pior ainda seria estabelecer um programa desses com uma “comissão” escolhendo os autores e municípios beneficiados.

Um programa desse tipo, entretanto, atenderia a demandas duplas: a dos autores que acham importante conversar com seus leitores e a dos municípios que se interessam em recebê-los. Sem discriminações. Sem que haja privilégios de nomes ou de cidades.

Esse exemplo evitaria também as “comissões de seleção”. Entraria no programa quem quisesse, com as condições previamente estabelecidas para todos. A “prova do pudim” é ver quem adere, seja do lado dos municípios, seja dos escritores.

O exemplo aqui dado abrange todos os aspectos de políticas públicas. Começa com uma proposta de modificação da Lei de Incentivos Fiscais valorizando a circulação e o acesso; passa pela valorização do local onde os cidadãos possam ler o que desejam, que é a biblioteca pública; envolve aspectos da aquisição do acervo para essas bibliotecas e aborda a questão do contato dos escritores com seus leitores. E exige uma estrutura de serviço público para executar, avaliar e aperfeiçoar as ações executadas.

O Ministério da Cultura demonstrou, com o projeto dos Pontos de Cultura, que tem imaginação para pensar grande. Mas faltou-lhe ainda a capacidade de ter uma visão orgânica e eficiente para estabelecer o conjunto de políticas para a cultura que o nosso país precisa e exige. E não conseguiu também montar uma estrutura de serviço que permita executar uma política nacional de apoio à cultura.

E políticas públicas (de cultura, como aliás em todas as áreas) são essenciais para o fortalecimento da democracia em nosso país.

Felipe José Lindoso

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