“Quero esquecer a guerra”

"Uma juventude na Alemanha" acompanha a vida do dramaturgo Ernst Toller e suas reflexões sobre a sociedade
Ernst Toller, autor de “Uma juventude na Alemanha”
27/05/2016

Ernst Toller, dramaturgo e poeta alemão, diz ter escrito a autobiografia Uma juventude na Alemanha para contar não apenas a sua juventude, mas a de toda uma geração que assistiu e participou de momentos decisivos para a história alemã. O autor parece estar no centro (ou muito perto dele) de vários fatos históricos e teve uma vida profundamente marcada pela sua época.

Toller nasceu em 1893 em uma cidade no leste da Prússia, onde hoje é a Polônia. Sua infância foi permeada por cenas que hoje nos lembram do filme Fita branca, de Michael Haneke. São narrados vários momentos que demarcam uma profunda intolerância religiosa e desigualdade social. Além disso, se vê uma criança que desenvolve poucas relações afetuosas, com familiares ou amigos, sem explicações para vários fatos do cotidiano.

Quando adolescente se muda para a França, onde estuda e tem mais liberdade para compreender o mundo (e a sociedade). Sua experiência termina quando é deflagrada a Primeira Guerra Mundial, e ele, junto de outros alemães, volta quase como fugitivo para seu país.

O momento delicado pelo qual o país passava acendeu no autor uma vontade de proteger sua nação — alistou-se voluntariamente para o combate. Se no início era animado e curioso, aos poucos foi se tornando cético e cansado. Toller vê os fronts de perto e narra casos impressionantes de dor e destruição. Aos poucos, a lógica de guerra passa a fazer menos e menos sentido para ele.

Se essa mudança já estava em curso enquanto ele estava na guerra, é na volta que ela se concretiza. Depois de ser declarado “inútil” para combate, retorna para seu país e percebe que nem sempre os motivos que levam a guerra são relevantes para a população — ao contrário, muitas vezes são motivos que atendem interesses privados. A decepção acontece com certo tom melancólico e Toller se torna um grande pacifista, unindo-se a movimentos contra a guerra.

Esses movimentos fazem com que, aos poucos, o autor se aproxime mais da vida política, que se mostra muito conturbada no período pós-guerra. Com a queda da monarquia, a população depara-se com um espaço vago que não sabe como preencher. Acontece então o que depois foi chamado Revolução Alemã: vários grupos lutam pelo poder em um período muito curto de tempo. Esse período se resolve com a consolidação da República de Weimar, sucedida pelo regime nazista.

Durante esse período, Toller luta pelas suas crenças (e em alguns momentos se questiona sobre a validade de algumas delas) e chegou a ser presidente por seis dias da recém-criada República Conselhista da Baviera. A falta de diálogo entre diferentes grupos políticos é evidente; até a falta de esclarecimento da população em saber como defender os seus interesses é gritante. O período é formado de uma sucessão de golpes de estado que trazem apenas mais pobreza e sofrimento.

Por fim, com a morte de Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo e eventual queda do partido, Toller é declarado traidor e sentenciado a cinco anos de prisão. Depois de cumprir a pena, é liberado para uma Alemanha diferente, onde começa a tomar forma o regime nazista. Muda-se para os EUA e comete suicídio em 1939.

Uma juventude na Alemanha se ocupa dos seus primeiros 30 anos de vida: anos conturbados, dolorosos e decisivos para história europeia.

Toller vê os fronts de perto e narra casos impressionantes de dor e destruição. Aos poucos, a lógica de guerra passa a fazer menos e menos sentido para ele.

No presente
Toller escreve o livro em primeira pessoa e no presente, sem ser uma voz onisciente que reserva toda a sabedoria de muitos anos vividos. Assim, não julga com sua voz de escritor suas escolhas enquanto criança ou adolescente — não sabe em determinada página o que acontecerá nas páginas seguintes.

Essa escolha deixa o leitor com uma grande sensação de acompanhar cada passo do desenvolvimento do autor. Vemos a progressão de suas ideias e crenças aos poucos, vemos seus erros e acertos, seu esclarecimento e falta de compreensão. É como se víssemos a história sendo construída dia a dia.

Ainda que narrado da perspectiva do autor, a autobiografia mostra o retrato de uma época — todas as dores e alegrias de uma população e como reagiram a tudo que lhes acontecia. Por ter vivido momentos tão específicos da história e tido uma posição relativamente central em vários deles, Toller explica as mudanças políticas com clareza e subjetividade, dando um ponto de vista importante dos acontecimentos do período.

Outro aspecto interessante do texto é a maneira com que o autor aborda a guerra. É claro que esse é um tema central do livro — além disso, a experiência que o autor viveu durante o combate é essencial para a formação da sua opinião e delimita a maneira com que viverá os próximos acontecimentos — mas ocupa poucas páginas da obra.

Nesse segmento, Toller, como uma espécie de fotógrafo que enquadra apenas algumas cenas, mais do que fortes, que dão conta do que ele quer dizer. Ele não se agarra a longas descrições de estratégias militares ou hierarquias seguidas pelos soldados, muito menos acompanha o movimento de tropas ou armamentos. Ele foca em algumas sensações pessoais e diálogos que teve com outros soldados, pequenas cenas em que a humanidade se depara com grandes questões e momentos-chave para que a guerra perdesse o sentido do ponto de vista dele.

Mais um aspecto abordado, ainda que de maneira breve, são os custos que a população pagou pela guerra: falta de alimentos e de energia são apenas alguns deles.

Toller também parece sincero em sua escrita e não poupa nem a si mesmo, frequentemente comentando sobre situações em que não tomou a melhor decisão ou não foi coerente consigo mesmo. O relato mostra uma realidade fria e dura. Ao longo da narrativa, Toller também explicita alguns dos momentos em que se sentiu inspirado para escrever suas obras literárias. Além de conhecer sua época, é possível conhecer um pouco dos hábitos dele como escritor.

Uma juventude na Alemanha integra a coleção Linha do tempo, da editora Mundaréu. A coleção visa publicar obras literárias marcadas por seu período histórico. Outros títulos são Marcha de Radetzky, de Joseph Roth; O súdito, de Heinrich Mann, Um ano sobre o Altiplano, de Emilio Lussu, entre outros.

Além do texto original, a edição conta também com um prefácio de Joseph Roth —Um apolítico vai ao Rechstag — e um texto escrito por Toller (Um olhar de 1933) no dia em que seus livros foram queimados na Alemanha em que o dramaturgo se pergunta: “Onde está a juventude da Europa?”. O texto, poderoso em suas poucas páginas, é encerrado com a seguinte frase: “quem se cala nesses tempos trai sua missão humana”.

Ao longo da narrativa, Toller reflete muito sobre a humanidade e o mundo que construímos. Ainda que essas reflexões sejam marcadas por seu tempo, elas extrapolam situações pontuais e são válidas para vários outros momentos decisivos. Se livros essenciais para entender a humanidade existem, esse é um deles.

Uma juventude na Alemanha
Ernst Toller
Trad.: Ricardo Ploch
Mundaréu
280 págs.
Ernst Toller
Nasceu na cidade de Szamicin, na então Prússia (hoje Polônia), em 1893. Foi poeta, dramaturgo e político. Suas peças mais conhecidas são Die Wandlung e Masse Mensch. Foi combatente na Primeira Guerra Mundial e posteriormente se tornou pacifista. Por ser judeu, emigrou para os EUA em 1933, com a tomada do poder pelos nazistas. Suicidou-se em Nova York em 1939.
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

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