Quermesse particular

Em "É agora como nunca", Adriana Calcanhotto nos convida a ler poemas contemporâneos de sua preferência
Adriana Calcanhotto, autora de Saga lusa: o relato de uma viagem
30/11/2017

O gosto do leitor brasileiro pela antologia não é novidade. No caso daquelas de poesia contemporânea, com certeza, a mais reconhecida até hoje por sua eficácia na divulgação dos autores nela editados é 26 poetas hoje (1975), organizada pela crítica e professora Heloisa Buarque de Holanda. Destacou-se na época por juntar muitos escritores que, até então, não tinham produções em livro, sendo divulgados somente por materiais mimeografados por razões financeiras ou políticas. Na sua maioria, devido à publicação da compilação, tornaram-se poetas reconhecidos pelo público, demonstrando-se mais uma vez o poder que uma boa antologia pode ter para levar os poetas aos leitores, ou ainda, os leitores aos poetas. No entanto, nosso gosto pela antologia também pode gerar debate, mas vamos por partes.

Pulando algumas décadas, antologias e polêmicas, chegamos agora a É agora como nunca: antologia incompleta da poesia contemporânea brasileira, organizada pela cantora e compositora Adriana Calcanhotto. Seu título é retirado de um verso do poema Ponteiro, de Laura Liuzzi, poeta que fecha o volume. Na introdução, à parte de sua carreira musical, a organizadora se define apenas como “leitora diletante”, e “não acadêmica ou crítica”, ao contrário de outros organizadores de compilações poéticas no Brasil, vindos do meio universitário. Por sua seleção de 41 poetas (na verdade, 42, se contar a epígrafe), apresenta-nos uma variedade que, de acordo com seus critérios, é “um instantâneo da poesia brasileira agora”. Contudo, como será possível resumir esse agora?

Ainda na introdução, Calcanhotto menciona mais uma vez a incompletude da sua escolha dos poemas já presente no subtítulo da antologia, alegando ser “totalmente pessoal, intransferível, autoral, ou ao contrário”. Acredito que a subjetividade confessada, mas não perdoada pelos leitores e pela crítica, é um dos motivos pelos quais a incompletude se mantém na tensão não resolvida entre o “pessoal” e seu contrário. O leitor ou não consegue identificar muito bem esse critério pessoal — talvez pessoal demais, realmente intransferível —, ou consegue fazê-lo e o aprova/reprova. Tentarei avaliar o projeto do livro sob essa dupla perspectiva.

Logo se vê que, pela declaração da intimidade revelada, da suposta ousadia da parte de Calcanhotto ao nos apresentar sua antologia pessoal, seu livro de “férias de verão”, que não há aí a preocupação em explicar o porquê disso. Os poetas e os poemas selecionados são aqueles porque sim. A princípio, não há qualquer problema nisso. Entretanto, ao nos apresentar suas leituras poéticas, e dizer que talvez elas não sejam só pessoais (“ou ao contrário”), a organizadora se sujeita a críticas. Por causa disso, podemos perguntar: por que publicar fulano e não sicrano? É o caso, portanto, de apontar pontos positivos e negativos da antologia, que, é claro, não poderia ser perfeita, incompleta como diz o título.

Só em livro
De início, há um ponto positivo que, todavia, aponta para pontos negativos: a escolha da epígrafe, o poema como ficou chato, de André Vallias, nos surpreende diante do resto dos textos por alguns motivos: primeiro, por não ser retirado de um livro. Apesar de ressaltar, em sua introdução, que hoje a poesia é divulgada por diversos meios, “em sites, blogues, revistas eletrônicas, recitais, saraus e até mesmo em livros”, Calcanhotto se detém somente em poemas lançados em livros, logo, de poetas de algum renome, ao menos a ponto de terem sido aceitos por algum editor. Não posso ser injusto, entretanto, e deixar de mencionar que hoje, ainda bem, se tornou mais fácil editar poesia, talvez devido ao aumento no número de editoras. Apesar disso, é claro que, ao se restringir apenas ao poema de Vallias como exemplo de produção fora de livro, se perde a oportunidade de divulgar autores ainda marginais, como Heloisa Buarque de Holanda fez em 1975.

Ainda partindo da epígrafe de Vallias, nota-se outra tendência clara da seleção de Calcanhotto, menos negativa que a primeira: é um dos poucos poemas de exploração gráfica ou visual mais evidente, junto com as composições selecionadas de Luana Carvalho e Marília Garcia, por exemplo. É claro que, como disse, isso não é algo negativo por si só, com certeza derivado do gosto pessoal da organizadora, mas nos priva de alguns elementos nesse “instantâneo” da poesia, em especial de seu diálogo com as outras artes. Afinal de contas, talvez na diversidade máxima esteja o real sentido da antologia, como na festa de Poemas reunidos, de Ana Martins Marques, que abre É agora como nunca:

Sempre gostei dos livros
chamados poemas reunidos
pela ideia de festa ou de quermesse
como se os poemas se encontrassem
como parentes distantes […]

Como numa antologia, os “parentes distantes” nessa grande quermesse de poemas são forçados a dialogar e podem ali firmar laços ou até criar desavenças, e acredito que isso só pode acontecer se eles realmente forem diferentes entre si, de diferentes origens, visões, formas. Assim, torna-se nítido ao leitor com alguma familiaridade com a poesia atual que existe, na compilação de Calcanhotto, uma grande ênfase em poetas do Rio de Janeiro. Há exceções, é claro, para uns vindos de Minas Gerais, Paraná e São Paulo e outros poucos de estados nordestinos. Mas, mesmo nesses casos, nota-se que, em sua maioria, são publicados por editoras de São Paulo e Rio de Janeiro. Logo se vê que muitas produções das outras regiões do país, de editoras menores e lançadas por outros meios que não o livro não foram contempladas.

Para não se limitar a desvantagens, queria lembrar que, desse grupo significativo de escritores, muitos não estão entre os mais lidos, publicados ou citados em jornais, revistas ou sites pelo mundo afora, sendo jovens poetas que ainda precisam ser reconhecidos, apesar de já terem livros lançados. Eles estão ali entre outros mais renomados, com mais volumes editados, de forma que o leitor passe por eles de maneira uniforme. Em relação aos autores de mais de um livro, acredito que resta um problema, já apontado por outros resenhistas: a predileção de Calcanhotto por um ou outro texto parece complicada diante de uma produção mais valiosa do autor. Ao mesmo tempo, há alguns acertos, em especial quando apresenta ao menos dois poemas de perfil distinto do mesmo escritor, dando-nos um estímulo para lê-lo além do volume. Também se destaca o fato que há grande variedade na extensão dos textos, não se limitando a poemas curtos ou de estrutura semelhante.

Mais uma vez, para finalizar, sobre o argumento de Calcanhotto, seu critério (talvez) pessoal e intransferível, acredite ser preciso deixar essas observações que saltam aos olhos não só para mim. Seu esforço não deixa de ser louvável, pois divulgar poesia é algo positivo, ainda que deixe de ser julgada pelo público. E, com certeza, uma das vantagens do gosto brasileiro pela antologia é que, com a vinda de uma, logo vem outra. Mariana Ianelli, em sua resenha da antologia da Calcanhotto para o Estadão, em fevereiro deste ano, lembra que a cantora já tinha feito coletâneas de poesia antes. Já o site Escamandro anunciou, ainda para este ano, sua própria compilação de poesia contemporânea brasileira, em edição digital, com 41 poetas. À própria Adriana Calcanhotto, inclusive, recomendaria que continuasse com seu hábito de ler e editar poesia, porém mais atenta aos critérios de seleção. Esperemos que nossa tradição antologista se mantenha firme, assim como É agora como nunca, com seus acertos e erros, e sempre alguma polêmica.

É agora como nunca
Org. Adriana Calcanhotto
Companhia das Letras
144 págs.
Adriana Calcanhotto
Nascida em 1965, em Porto Alegre (RS), a reconhecida cantora e compositora brasileira iniciou sua carreira musical nos bares da capital gaúcha. Lançou seu primeiro disco, Enguiço, em 1990. Iniciou seu percurso como organizadora de antologias em 2014, ao lançar Antologia ilustrada da poesia brasileira e Haicai do Brasil. Também é escritora e ilustradora.
Daniel Falkemback

É professor, tradutor e doutorando em Letras na UFPR.

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