Não sei de onde terá vindo o modelo, em voga, das megalivrarias. Se já inaugurou uma na sua cidade, você sabe que estamos falando de alguma coisa daquelas que, a princípio, parecem muito boas e brilhantes, até se ter — no caso das livrarias dos “centros de compras” — a curiosa impressão de livros para ver nas estantes, como holografias sob holofotes, se é que me entendem os que já espirraram em alguma quieta livraria de Trastevere ou de Ipanema mesmo.
Não me sinto numa livraria nesses espaços novos e monumentais, com livros cativos da apresentação suntuosa de celofane e capas envernizadas, mocinhas e rapazes meio zumbis e fãs de Caetano vendendo obras que nunca irão ler, os títulos como que disfarçados sob o clima de consumo de cultura ao som de música ambiente e mastigação de pão de queijo com capuccino na cafeteria das ditas cujas super-hiper-megas “lojas” de livros (assim as chamam os seus proprietários orgulhosos dos metros quadrados), etc.
Suponho que esse modelo triunfante tenha vindo dos shoppings que pouco têm a ver com livros fora de moda, acomodados nos pequenos espaços de silêncio acolhedor, sem música, café e “área educativa” para crianças brincarem com livros como objetos descartáveis na forma de elefante, leão e hipopótamo supostamente simpáticos.
Comprei quase todos os meus livros — depois de muito procurar ou escolher — no ambiente limitado de livrarias que já não estão nos seus lugares, foram fechadas, extintas e até mesmo demolidas para existir só na memória do tato, dos dedos examinando volumes numerados e assinados, não escapando o leitor compulsivo de aspirar o cheiro das páginas de livros portugueses, espanhóis e franceses de folhas à espera das espátulas aposentadas.
Havia um ritual com o livro, uma cerimônia secreta no manuseio desse “produto” venerável e mais digno de ser embrulhado do que ser entregue num saco plástico com propaganda de croissants gordurosos e outras parcerias das novas livrarias guinchando o leitor para a compra do acessório — porque o Livro talvez seja um estranho no ninho das novas livrarias suntuosas de espelho, luz e vazio como uma casa moderna num antigo filme de Antonioni sobre o eclipse do humano na noite da incomunicabilidade.
Minha vista educou-se na luz discreta sobre as lombadas, sou do tempo de estantes até envidraçadas, onde os livros do estoque semelhavam as estantes de uma casa, enquanto os lançamentos estavam nas bancadas acessíveis, sob a luz amarela de lâmpadas antecipando o tom dourado da tarde ir suavizando as coisas lá fora, quando o crepúsculo na Rua da Imperatriz vinha por sua coria na sombra das árvores curvadas sobre o rio cortando a cidade.
Num tempo em que tudo virou Mercado, eu sei que o livro — um dos “objetos” mais antigos do mundo — teria a sua vez de ser tratado como produto, em dezenas de telas de terminais de computadores que amputaram o prazer de descobrir um título apertado nas estantes das livrarias de outrora, antes do admirável mundo novo do e-book e do livro on-line, entregue pelos fantasmas sem mãos da virtualidade.
“Imperatriz”, “tom dourado”, “fantasmas” — essas são palavras propositadamente deslocadas para tratar do tema das livrarias espetaculares no lugar das livrarias ricas de modéstia e calma, expondo Suave é a noite como um mistério a ser decifrado. No lugar disso, agora entramos numa livraria-monstro do gosto desta época (será mesmo?) e todas as luzes violentas do comércio se acendem sobre capas gritando nos ouvidos dos meus olhos: compre, compre, compre.
A leitura não é — nunca será — estimulada pelo impacto. A grandiosidade equivocada não tem o que fazer por livros de verdadeira qualidade, que o tempo vela e que você descobre, cedo ou tarde, secretamente acumulando a estranha sabedoria das obras indefiníveis num certo escaninho da alma.
“Alma”? Desculpem pela palavra (este é um texto de gosto antiquado).
Ia eu dizendo que não se conquista (nem sequer os pequenos leitores) pelo aliciamento para o reino demolido das palavras, tipo “aqui, temos um espaço para vândalos-mirins brincarem com livros como se fossem bonecos sempre-em-pé como uma bola quadrada; aqui, você ouve música, aprende-se caratê e a fazer sushi de ikebana. De quebra, vendem-se livros com sabor de literatura de plástico para o namorado que não esteja sabendo o que dar para a namorada”, etc.
Em defesa das superlivrarias, deve-se dizer que elas podem ser boas ao menos para marcar encontros: ninguém deixa de ver uma dessas grandes “lojas” de livros do tamanho de estacionamentos verticais, brilhando como catarro em parede de vidro. Brilho sob brilho, são lágrimas na chuva os lamentos chorados sob os números estonteantes das livrarias de 200 mil títulos como que resguardados da leitura — e nenhuma obra de salvação que possa evitar o suicídio de um mendigo desesperado.
Os livros — alguns livros — podem salvar o mundo (e o pedinte de Fiodor), além do novo papa e até você — que gosta das jumbo-livrarias instaladas nos espaços-âncoras dos monster-shoppings.
Mas, você realmente gosta das grandes, modernas, assépticas e abstratas livrarias do gosto de Matrix?
O Livro vem do enrugado pergaminho e do silêncio de claustro das universidades medievais empoeiradas. Debaixo do pó, elas preservaram o mundo da antiguidade clássica no meio do mistério cristão-bizantino. Há obras sobre isso, lacradas sob liso papel celofane, na seção de livros de arte das completas, maravilhosas, incríveis “MacBooks” que nem são mais livrarias, ou não mais apenas isso, essa palavra que lembra alfarrábio, manuscrito, sebo, vela, pena, papel de arroz, percalina, douradura, encadernações inglesas, gravuras e lembranças da margem esquerda do Sena transferida, afinal, para a direita do capitalismo triunfante do final do século 20.
E uma livraria da nova cultura é uma coisa do 21, do jogo iluminado para admirar e comprar (e ler?) os livros entregues em sacolas de plástico reciclável, colorido e artificialmente aromatizado.
Por que procurar um livro obscuro, para que comprar o “Judas”, numa imensa livraria cheia de estudantes comemorando o novo Dia de Matar o Índio? Numa velha livraria, pequena e cheia de pó, se você não achava o livro já-não-lido de Thomas Hardy, terminava levando um outro, algum livrinho que você não buscava e que se revelava capaz de mudar a sua vida, debaixo da luz fraca, no meio da relativa calma do antigo lugar dominado por uma porta de guizos.
Mas quem quer calma? E quem ainda quer ouvir guizos, címbalos, sistros, quando todos parecem preferir percussão metalizada, sintetizada e aumentada entre as escadas que dão acesso ao telão instalado no andar de cima, o andar eletrônico das benesses do Mercado “que recupera tudo”?
Numa antiga livraria demolida, você poderia encontrar até um livro desconhecido de George Katsimbalis — aquele que gritava para os galos da Ática — e, talvez, quem sabe também o grande amor da sua vida, calçada com galochas, num sábado de chuva (“ela entrou, sob o som delicado da porta, e você a viu sob a luz coada, a fronte molhada dos pingos na franja um tanto juvenil”)…
Poesia! Para que serve a poesia numa grande e dispersa livraria? Como no poema de Ascenso Ferreira: “para nada”, quando já não parece haver tempo para poesia & amor entre dois cafezinhos. O tempo ruge, a calculadora urge, a época é fria e ninguém mais usa galochas — mesmo nos sábados antigos dos novos romances com o gosto ressecado de pão de queijo frio. E, em vez dos galos da Ática, ouvem-se os címbalos falsos do mais novo “romance” de Paulo Coelho abarrotando a entrada da cultura e o caixa.
Melhor: se você achar que PC já era, estão chatas e repetitivas as bobagens que ele sempre repetiu, leve a nova versão de auto-ajuda elaborada por Lya Luft, com a inteligência da gaúcha agora a serviço dos descartes do livro-sanduíche-íche-íche. É o produto, por excelência, das super-hiper-megalivrarias.