Não é sem tempo o ressurgimento de Rosário Fusco. Após longa hibernação e anos de injusto ostracismo e indiferença editorial, volta em grande estilo com a edição de a.s.a. – associação dos solitários anônimos, um dos seus romances inéditos.
Signatário — ao lado de Enrique de Resende, Guilhermino César, Ascânio Lopes, Oswaldo Abritta, Francisco Inácio Peixoto e Martins Mendes — da legendária revista Verde (1927-1929), que surgiu no rastro do movimento estético paulista de 22, Fusco iniciou-se como poeta. Essa publicação foi um balão de ensaio de um grupo de estudantes secundaristas, mas rompeu as fronteiras de Minas, contando com a colaboração de escritores do Brasil e do exterior, espantou muita gente com sua ousadia e independência, a ponto de despertar a reação de Ribeiro Couto: “Todo o Brasil está surpreso: existe Cataguases!”.
Há mais de três décadas a.s.a. aguardava publicação, assim como outros dois, ainda na gaveta: Vacachuvamor e Um jaburu na Torre Eiffel. Graças aos esforços de outro mineiro, o crítico, poeta e ensaísta Aricy Curvello, que teve acesso aos originais, esse romance foi cuidadosamente revisto e preparado, com apoio do editor paulista Cláudio Giordano, que iria patrocinar a publicação. No entanto, a obra foi acolhida pela Ateliê Editorial, incluída na Coleção Lê Prosa, dirigida por Marcelino Freire. A edição, não obstante o mérito de tirar do limbo um dos mais importantes escritores brasileiros, pecou deixou quanto à revisão, além de menosprezar a excelente apresentação de Fábio Lucas, relegada a posfácio. A capa, ao grafar o nome do livro em maiúsculas, em desacordo com o original, contraria orientação do próprio autor. Fusco, mais uma vez, foi vítima do menoscabo, pois na reedição de O agressor (Bluhm, 2000) macularam a obra ao enxertarem na orelha um pífio texto de Paulo Coelho.
No momento em que ressurgem autores como Campos de Carvalho, José Agripino de Paula e Samuel Rawet, a.s.a. completa o resgate desse quarteto renovador da prosa brasileira. São autores que representam um marco distintivo de uma narrativa reconhecidamente visceral e transgressora, pontuada por um clima surrealista, mas de grande densidade temática e psicológica, rompendo os cânones tradicionais da nossa literatura.
Em a.s.a., Fusco aprofunda e radicaliza sua reflexão sobre um universo de sombras, aparências e angústias, em que protagonistas de um mundo cão (aqui nomeados como Fulano/a, Sicrano/a, Beltrano/a, Louro, Arquiteto, Alemão, Perneta, Mudo) constituem-se numa verdadeira representação da vida de gente sem rosto e sem lugar num tempo e numa geografia caricaturados pelo absurdo e pela perda da individualidade. São seres vivendo no limbo social e no underground psicológico, gente à beira-vida, portuários, habitantes de cortiços, cafetões, turistas do imponderável e da perplexidade. Enfim, são criaturas solitárias, desarticuladas, em conflito permanente, vivendo histórias que oscilam entre o absurdo e a alucinação, com seus degredos interiores e suas torturas quotidianas, buscando regurgitar fantasmas e absorver suas culpas e suas feridas existenciais. A linguagem de a.s.a. vem emulada por numa atmosfera metafísica, reproduzindo diálogos que são a reverberação do próprio caos, um território que Fusco explora com dureza e poesia.
Multifacetado e inquieto, Rosário Fusco fez de tudo na vida, antes de virar mito em sua terra e fora dela: foi lavador de vidros em farmácia, pintor de tabuletas de cinema, servente de pedreiro, bedel de ginásio, advogado e candidato a deputado federal. Trabalhou na imprensa, sendo um pioneiro: lançou o primeiro concurso de contos do Brasil, na revista A Cigarra e foi o primeiro a levar ao ar uma novela radiofônica, na Rádio Ipanema (1936). Rosário Fusco é reconhecido pela crítica como o verdadeiro precursor do realismo fantástico, pois O agressor (1940) antecede a O ex-mágico (1947), de Murilo Rubião, à própria obra de José J. Veiga. Depois de viver no Rio, Nova Friburgo e Paris, Rosário Fusco voltou a Cataguases (com quem afirmava manter uma relação de amor e ódio) para morrer de tédio e de cirrose, como gostava de dizer. Assim, passou os últimos anos de sua vida, com sua esposa Annie e sua inseparável garrafa de uísque, isolado, longe dos holofotes e desiludido, vindo a falecer em 17 de agosto de 1977 esse “mulato de 1,87 m acima do nível do mar”.
Gênio incompreendido, dotado de um temperamento vulcânico e polêmico, viveu a vida e a literatura de forma intensa e apaixonada. Foi tido como maldito e irreverente, em razão de sua própria autenticidade, tem sido comparado a Kafka e Dostoievski, por retratar universos análogos. Em seus romances, reflete de forma bisonha, irônica e cáustica, sobre o absurdo e o ridículo que permeiam a existência humana e na crítica exacerbava o caráter demolidor de suas opiniões, não economizando na ridicularização das intocáveis personalidades literárias de sua época. Por exemplo, sobre Guimarães Rosa, cunhou: “Quando me falam da ‘revolução’ de Grande Sertão: Veredas lembro-me que seu vaidoso autor quis — e conseguiu — escrever um Ulisses de província”. Sobre Rilke, outra irreverente sentença: “Tinha tantas perebas psicossomáticas que nem Rodin conseguiu descascá-las a cinzel”. Graça Aranha também não foi poupado: “Especialista em escrever sobre assuntos dos quais não pescava neca. Nome de avenida”. Nem Fernando Pessoa escapou à sua acidez: “Um chato e com inumeráveis pseudônimos. Deve sua permanência aos adidos culturais portugueses, às puxações ingênuas dos poetas provinciais”.
Seu legado literário é singular, tanto no campo da prosa, quanto da ensaística, da crítica, da memória (diários) e do teatro. Em sua bibliografia destacam-se Vida literária, Carta à noiva, O livro de João, Amiel, Introdução à experiência estética e O dia do juízo, mas ao longo dos anos sofreu reprovável alijamento, estigmatizado em razão, segundo apontam críticos e amigos, de seu apoio ao Estado Novo, tendo por isso amargado muito tempo, o silêncio e a indiferença da mídia, num paralelo ao que ocorreu com Wilson Simonal na música (por ter apoiado o Golpe de 64).